O REVISIONISMO NOS 75 ANOS DO DIA D: A VITÓRIA ROUBADA E A HISTÓRIA MUTILADA PELA GEOPOLÍTICA
Por Luã Reis
Em um cemitério no sul da Inglaterra, líderes da Europa e da América do Norte se reuniram, nos dias 5 e 6 de junho, para celebrar os 75 anos do Dia D. O tom do evento foi sentimental: Theresa May, ainda primeira ministra, que deixará o cargo justamente após o evento, no dia 7, destacou a “coragem” e “devoção” dos soldados. Macron ressaltou a “amizade” entre a França, Inglaterra e os EUA. Trump homenageou os veteranos, cuja dívida é “eterna”. (https://www.terra.com.br/noticias/mundo/macron-e-theresa-may-comemoram-os-75-anos-do-dia-d,03b9462a9cf8f0afad1797be7bf2f045oke2xb23.html)
A inusitada presença da líder da Alemanha, Angela Merkel, declarando que não “podemos repetir o horror inimaginável” mostrava que o evento buscava mais uma comoção política do que um resgate histórico. (https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/06/05/na-inglaterra-trump-e-outros-15-lideres-mundiais-celebram-o-dia-d.ghtml)
Em 6 de junho de 1944, tropas americanas e britânicas – que incluíam uma enorme proporção de súditos coloniais da Rainha – realizaram o maior ataque anfíbio da história, invadindo a Normandia, no noroeste da França, ocupada pelas tropas nazistas. Operação Overlord foi o codinome do bem sucedido e grandioso ataque nas praias da Normandia, que, no entanto, deve ter a importância devidamente relativizada para o desfecho da Segunda Guerra Mundial.
Tomando como referência o número de baixas envolvidas nas batalhas e operações da Segunda Guerra, o desembarque na Normandia ocupa um discreto nono lugar. Os números de mortos e feridos nas mais importantes conflitos, segundo Norman Davies, foram: Operação Barbarossa – 1.582.000; Stalingrado – 973.000; Cerco de Leningrado – 900.000; Kiev – 657.000; Operação Bagration 1944 – 450.000; Kursk – 325.000; Berlim – 250.000; Campanha Francesa de 1940 – 185.000; Dia D- 132.000.
A relação entre as batalhas e as baixas é implacável, tornando a seguinte conclusão historicamente irrefutável: a Guerra foi travada e decidida na frente oriental, isto é, nos confrontos entre as tropas nazistas e o Exército Vermelho soviético.
O “D” não é de definitivo ou decisivo. A expressão militar americana “D-Day” marca o início de uma operação militar, que no maior conflito militar esteve longe de começar na “hora H”, mas que foi atrasada em, pelo menos, três anos. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Dia_D_(termo_militar))
Em junho de 1941, a Alemanha nazista inicia a operação Barbarossa – nome em homenagem a um príncipe que estimulou as Cruzadas, que os bolsonaristas enaltecem – atacando a União Soviética e abrindo a Frente Oriental. A Frente Oriental foi o maior teatro de guerra na história da humanidade, abrigando a maior parte do Holocausto, dos campos de extermínio, marchas de morte e guetos e a maioria dos pogroms. Mais pessoas lutaram e morreram na Frente Oriental do que em todos os outros teatros da Segunda Guerra Mundial combinados, sendo 90% de todos as tropas alemães mortas nesta frente.
Mas não eram só tropas alemães que atacaram a URSS: Finlândia, Hungria, Itália, Polónia, Romênia, Croácia, Bélgica, Eslováquia, Espanha, França, Portugal e Grécia mandaram suas tropas fascistas para Frente Oriental. Totalizando 4,5 milhões de soldados alemães, agrupados em dezenas de divisões, em uma linha de ataque que cobria 3000 km utilizando 600 000 veículos blindados.
Enquanto isso, na Frente Ocidental, Hitler dominava a Escandinávia, os Países Baixos e a França, enquanto travava batalhas aéreas contra a Grã-Bretanha, em uma intensidade incomparavelmente menor. Na Europa ocidental, havia campos de trablaho e prisão, na Europa oriental, campos de extermínio (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_dos_campos_de_concentra%C3%A7%C3%A3o_nazistas).
A abertura de uma nova frente era fundamental para amenizar as perdas humanas e materiais no leste. Entretanto, apenas três anos depois do ataque nazista à União Soviética, e as consequentes monumentais baixas, que americanos e ingleses cumpriram a promessa de abrir uma nova frente, no dia 6 de junho de 1944. Convenientemente, no momento no qual a ofensiva já havia passado para os soviéticos, em franca marca para Berlim.
Não por acaso, poetas celebraram Stalingrado e não o Dia D, como Carlos Drummond de Andrade “As cidades podem vencer, Stalingrado!/Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga./Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo/Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres/a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem” e Pablo Neruda “A esperança que se rompe em seus jardins/como a flor da árvore esperada/a página gravada de fuzis/as letras de sua luz, Stalingrado.”
Dos 70 milhões de mortos na Segunda Guerra Mundial, 27 milhões foram de russos. 81% da população da Rússia teve parentes mortos e feridos no confronto contra a Alemanha. Não por acaso o país se refere ao conflito como A Grande Guerra Patriótica e não com a terminologia ocidental.
Essa história, no entanto, é mutilada. Filmes como “O Resgate do Soldado Ryan”, de Steven Spielberg, no qual os soldados cidadãos em um exército de valentes altruístas, enaltecem a participação dos Estados Unidos na Guerra, a partir da reconstituição do Dia D. A consequência é a distorção histórica. Pesquisa realizada em 2016 entre habitantes da Alemanha, França e Reino Unido mostra que apenas 13% dos entrevistados atribuem ao Exército Vermelho a reponsabilidade pela libertação da Europa do domínio do nazi-fascismo, enquanto para 20% foi graças aos britânicos e para 43% se deve ao exército americano.(https://br.sputniknews.com/russia/201611216890981-urss-segunda-guerra-mundial-danos-perdas/)
Longe de ser uma questão do passado, o revisionismo histórico em relação a Segunda Guerra Mundial repercute hoje. A “polêmica” sobre o nazismo “ser de esquerda”( https://www.estrategiaglobal.org/2019/04/03/o-nazismo-e-de-esquerda-hitler-realizou-um-banho-de-sangue-mas-faltou-uma-reforma-da-previdencia/); os negadores do Holocausto; a proibição do governo da Polônia que se aponta a participação de poloneses nos extermínios de judeus; o voto contrário dos EUA a resolução da ONU que proíbe a glorificação do nazismo (https://horadopovo.org.br/onu-aprova-condenacao-da-glorificacao-do-nazismo-com-voto-contra-dos-eua/); Netanyahu declarando que “Hitler não queria realizar o Holocausto”; o perdão de Bolsonaro ao Holocausto. Distorções históricas que se afirmam mutuamente, com consequências políticas no presente.
Em mais de uma oportunidade a Rússia alertou para os resultados do revisionismo histórico (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/06/visoes-da-batalha-na-russia-e-no-ocidente-sao-inconciliaveis-ate-hoje.shtml). Os efeitos estão cada vez mais presentes e perceptíveis no mundo contemporâneo, como as marchas nazistas nos EUA, em Charlloteville, por exemplo, onde os manifestantes não se envergonharam em ostentar suásticas, com a complacência de Trump. (https://g1.globo.com/mundo/noticia/ha-culpa-dos-dois-lados-diz-trump-sobre-violencia-em-charlottesville.ghtml) Como o governo da Ucrânia – que também votou contra a resolução da ONU sobre a proibição da glorificação do nazismo – composto por partidos abertamente nazistas que enaltecem os colaboradores locais de Hitler. O governo ucraniano é apoiado pela França e pela Alemanha, que contrariando a própria declaração de Merkel flerta com a repetição do horror. Ou, ainda, como nos diversos movimentos e líderes abertamente neofascistas pelo mundo, do Brasil às Filipinas, da Colômbia à Itália.
Os líderes ocidentais celebram seus mortos do Dia D, cuspindo nos túmulos daqueles que deram a vida pela vitória que agora roubam. Assim, também acabam por tripudiar sobre a memória dos próprios soldados que julgam homenagear, naquele cemitério no sul da Inglaterra.