A China avança em meio ao caos e as ameaças

Por Pepe Escobar (via Asia Times, traduzido por Patricia Zimbres, para o 247)

Em meio à maior contração econômica em quase um século, o Presidente Xi, no mês passado, deixou muito claro que a China deveria se preparar para ameaças externas implacáveis e sem precedentes.

Ele não se referia apenas ao possível desacoplamento das cadeias de abastecimento globais e à incessante demonização de todos os projetos relacionados às Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Rota.

Um documento interno supostamente vazado, secreto e invisível dentro da China, mas mesmo assim obtido por alguma fonte obscura com conexões no Ocidente, chegava a afirmar, em essência, que o jogo de culpabilização contra a China com relação ao vírus é como a repetição da reação negativa a Tiananmen.

Segundo esse documento secreto e invisível, a China teria que “se preparar para um confronto armado entre as duas potências globais”- uma clara referência aos Estados Unidos. É como se essa estratégia agressiva fosse de iniciativa do estado chinês, e não uma reação à escalada maciça da guerra híbrida 2.0 deslanchada pelo governo dos Estados Unidos.

Para todos os fins práticos, a demonização histérica da China por todo o Beltway de Washington agora superou a histeria anterior de demonização da Rússia.

O que Pequim antes definia como um “período de oportunidade estratégica” chegou ao fim. Corriam rumores nos círculos da inteligência chinesa de que as lideranças do PCC calculavam que essa janela de oportunidade estratégica se prolongaria sem impedimentos até a data chave de 2049, quando o “rejuvenescimento nacional” teria sido plenamente alcançado.

Pode esquecer. Agora, ao jogo está concentrado na guerra híbrida 2.0 empregada pelos Estados Unidos para conter a potência emergente, custe o que custar. E isso implica também que uma pletora de planos chineses passou agora a ser turbinada ao máximo.

A prioridade absoluta, agora, é recuperar a produtividade da máquina Made in China. Durante sua recente visita à província de Shaanxi, de importância histórica crucial para o PCC, o Presidente Xi insistiu nessa prioridade, acoplada à ofensiva anti-pobreza. Ele havia prometido eliminar a pobreza neste ano de 2020.

O que é importante e contrário a todas as previsões ocidentais é que as exportações chinesas cresceram 3,5 % em abril, depois de uma queda de 6,6% em março. Isso destrói por completo a razão de ser do desacoplamento. O governo japonês, por exemplo, vem acelerando às pressas a relocação de suas fábricas situadas na China. Uma estratégia nada inteligente.

Essas fábricas estão deixando um país onde o Covid-19 foi praticamente erradicado. E se elas se transferirem para o Vietnã, bem, será ainda uma economia socialista (com características vietnamitas).

O crescimento do PIB da China caiu em cerca de 6,8% no primeiro trimestre de 2020. A recuperação já começou. Oficialmente, o desemprego estava em 5,9% em fins de março – não levando em conta trabalhadores migrantes que retornaram às grandes cidades depois de passar o pico da epidemia em zonas rurais. Houve projeções de desemprego de 20%, que mais tarde foram retiradas.

A recuperação será uma mistura de estímulo econômico às empresas, pequenas e grandes; investimentos em infraestrutura; e auxílio na forma de vales para a grande massa de trabalhadores. O sistema hukou – que liga os direitos sociais ao local de residência – também será reformado. A data chave será 22 de maio, durante a  sessão adiada do Congresso Nacional do Povo.

A Cinturão e Rota em pleno funcionamento

Em termos geopolíticos, a análise do think tank francês CAPS, subsidiário do Ministério das Relações Exteriores em Paris, já se converteu praticamente em um mantra por todo o Ocidente.

O CAPS está alarmado com o fato de a China ter-se tornado indispensável, e questiona seus “valores” e sua “agenda oculta”. Com a União Europeia totalmente paralisada e demonstrando de forma evidente sua irrelevância em uma miríade de níveis, especialmente em termos de  um consenso quanto a um pacote de ajuda efetivo para a totalidade de seus membros, o Ocidente em declínio, quase que em bloco, aterroriza-se com a perspectiva de a China estar em um processo irreversível de se tornar a maior potência mundial.

Mesmo após sofrer  o violento golpe do Covid-19, Pequim parece estar no controle de todas as variáveis básicas de sua política econômica (instituições financeiras e grandes empresas). O PCC redobrará esforços para desenvolver a totalidade da máquina produtiva, lado a lado com a aplicação ampla das técnicas de Inteligência Artificial.

O que parece estar estabelecido a estas alturas  é que a China irá, antes de mais nada, garantir seus próprios interesses nacionais – em termos das cadeias globais de abastecimento e exportações. No curto e médio prazos, haverá uma concentração do foco em alguns corredores de conectividade terrestres e marítimos  selecionados – incluindo a Rota da Seda da Saúde.

Mesmo com o Covid-19, o comércio da China com os países da Iniciativa Cinturão e Rota cresceu 3,2% no primeiro trimestre, um resultado nada mau se comparado com os 10,8% de todo o ano de 2019.

Segundo o Ministério do Comércio, o comércio de Pequim com 56 países da Cinturão e Rota espalhados pela Ásia, África, Europa e América do Sul representa importantes 30% do total do comércio anual. Compare-se esse número aos 13% a 32% de contração do comércio global previstos pela Organização Mundial do Comércio para 2020.

Portanto, embora uma queda no comércio no primeiro trimestre de 2020 fosse mais que previsível, é certo que vá haver uma rápida retomada, principalmente com relação ao Sudeste Asiático, o Leste Europeu e o mundo árabe.

Como seria de se esperar, a Cinturão e Rota vem enfrentando uma série de desafios no curto e no médio prazos, todos eles ligados a uma quebra na conectividade: interrupções de cadeias de fornecimento; restrições generalizadas às viagens e à concessão de vistos; controles de fronteira severos; e atrasos em projetos devido ao aumento dos custos.

Um exemplo seria a ferrovia de alta velocidade Jacarta-Bandung, com 150 quilômetros de extensão e custo de 6 bilhões de dólares, obra à qual os especialistas chineses estão começando muito lentamente a voltar, após terem estado ausentes em razão de restrições do governo indonésio. Ao longo do Corredor Econômico China-Paquistão, a quarentena obrigatória para os técnicos chineses paralisou as obras por pelo menos dois meses. O mesmo se aplica a projetos em Bangladesh e Sri Lanka.

Segundo um relatório da Unidade de Inteligência Economist, o Covid-19 iria descarrilar a Cinturão e Rota em 2020. Isso talvez seja verdade apenas para os quatro primeiros meses do ano. Mesmo durante a epidemia, Pequim assinou acordos para novos projetos da Iniciativa em Mianmar, na Turquia e na Nigéria.

As obras da ferrovia de alta velocidade de 414 quilômetros ligando a China ao Laos – ligando Yunnan, via Vientiane, à Tailândia, Malásia e Cingapura – não foram interrompidas, e seu término está previsto para fins de 2021. É importante lembrar que a ASEAN é a principal parceira comercial da China, superando a União Europeia atolada em crises.

Prestem atenção no yuan digital

A principal lição a ser extraída de tudo isso é que a complexa macro-estratégia do PCC não sofrerá alterações. Isso significa que a China continuará sendo o principal motor da economia global, com ou sem desacoplamento, com a Cinturão e Rota no cerne da estratégia macro-política chinesa, associada a um sólido impulso em direção ao multilateralismo.

Embora vastas faixas da economia mundial, principalmente no Sul Global, não demonstrem a menor intenção de se desacoplarem da China, Pequim terá que estar pronta para contra-atacar a guerra híbrida de espectro total desencadeada por Washington em todas as frentes – geoeconômica, cibernética, biológica e psicológica.

Como Kishore Mahbubani detalhou em seu livro mais recente, isso não significa que a China tenha a intenção ou a capacidade  de se tornar um novo gendarme do mundo. Ela, sem dúvida alguma, irá turbinar seu poderio econômico e financeiro, como, por exemplo, na cuidadosa implementação do yuan digital possivelmente lastreado em ouro.

E então há o fator que muda tudo e que desenvolve implacavelmente, e que é responsável por tantas noites mal-dormidas no establishment dos Estados Unidos: a parceria estratégica Rússia-China.

Há duas semanas, um desdobramento geopolítico imensamente importante foi praticamente eclipsado pela histeria do coronavírus.

Moscou tem pleno conhecimento de que Washington está empregando sistemas de mísseis de defesa muito próximos à fronteira da Rússia, com o potencial de desencadear o primeiro ataque nuclear.

Moscou ter conhecimento desse fato é só parte da história: o principal é que a Rússia tem plena confiança em suas armas sofisticadas, como  o Sarmat e o Avangard, para tratar da questão.

Mais complexa é a questão dos laboratórios de armas biológicas do Pentágono no território da antiga União Soviética – assunto também acompanhado de perto por Pequim. Moscou identificou um laboratório próximo a Tblisi, na Geórgia, e 11 outros na Ucrânia. E em 2014, quando a Crimeia foi reunificada com a Rússia, cientistas também encontraram um laboratório em Simferopol.

Toda essa informação  sobre armas nucleares e biológicas, como fontes nos serviços de inteligência confirmaram a mim, é trocada no nível mais alto da parceria estratégica Rússia-China.

O próximo passo importante no tabuleiro do xadrez geopolítico aponta para a parceria negociando conjuntamente suas relações bilaterais com os Estados Unidos.

Nada poderia ser mais racional, tendo em vista que os dois países são vistos como as duas maiores  “ameaças” aos Estados Unidos, segundo a Estratégia de Segurança Nacional norte-americana.

É isso que se pode chamar de uma mudança de paradigma de primeira importância

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