A Altivez da Chancelaria Venezuelana vs. a Submissão da Chancelaria Brasileira

Bolsonaro se dobra aos interesses estadunidenses

Por Matheus Mendes

Eventos e ações recentes no teatro global revelam o conteúdo de duas posições antagônicas no âmbito da diplomacia atual. De um lado, encontramos o imperialismo norte-americano, agora adotando uma postura agressiva de confronto com o direito e contra os organismos internacionais. De outro lado, temos a posição adotado pela grande maioria das chancelarias do planeta, a de preservar e fomentar os mecanismos de resolução pacífica dos conflitos internacionais, em clima de cooperação e fortalecimento do sistema do direito internacional.

Essas duas posições antagônicas são também posições antagônicas no espectro geopolítico: enquanto a destruição do sistema do direito internacional é a posição trumpista de extrema-direita, a posição conservadora das relações internacionais acabou tornando-se uma posição multilateralista que possui em seu horizonte um mundo sem uma única grande hegemonia estadunidense dominando os assuntos estrangeiros.

Para ilustrar esse ponto, podemos tomar como exemplo a atuação de duas chancelarias latino-americanas: a brasileira, de Ernesto Araujo, e a venezuelana, de Jorge Arreaza. 

Ernesto Araujo é conhecido pelos brasileiros como aquilo que é: um reacionário afim às incoerências de Olavo de Carvalho, apologeta do monarquismo e adepto das mais variadas teorias da conspiração, que vão da crença num globalismo mundial (illuminati) que usaria malignamente o argumento do aquecimento global contra o desenvolvimento do comércio internacional, à tese conspiracionista do supremacismo ocidental de que estaria em operação uma grande ofensiva comunista de islamização da Europa por meio da imigração massiva de árabes. No comando do Itamaraty, Ernesto Araujo promove eventos de cunho monarquista e anti-comunista. De fato, divulgar um tipo de pseudociência e anti-intelectualismo, promovendo pessoas desqualificadas e sem credenciais científicas, como youtubers e membros da família real, à pessoas dignas de palestras sobre assuntos relevantes às Relações Internacionais, tem sido um dos destaques da atual gestão do 4chanceler, como o Ernesto Araujo é chamado, em jogo de palavras que inclui o fórum de internet onde se reúne a alt-right e o cargo que ocupa.

Desde que Bolsonaro chegou ao poder, a chancelaria brasileira mudou ao avesso sua tradição diplomática. De um país cuja diplomacia ativa se destacou durante séculos pela promoção da soberania, reconhecimento da autodeterminação dos povos e cooperação para a promoção da paz, o Brasil passou a praticar uma diplomacia passiva de jogo casado em acordo prévio com os EUA. Antes de fazer qualquer coisa nos fóruns e organismos internacionais, o Brasil presta contas previamente aos EUA. Foi assim que o Brasil se comportou quando pretendia indicar um brasileiro ao cargo de direção do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), atitude comunicada e rechaçada pelos EUA, que então comunicou ao governo brasileiro suas intenções de promover um diplomata americano, fazendo com isso que o Brasil mudasse de posicionamento, passando então a apoiar incondicionalmente o candidato americano.

O Brasil, dessa forma, se submete por completo a uma nação estrangeira. Não somente se presta a ser linha auxiliar dos EUA, mas como embarca na estratégia de Trump de desacreditar as instituições internacionais, desestabilizando a segurança jurídica internacional. A estratégia consiste, em parte, na tática de criar o caos, gerando dúvidas na comunidade internacional sobre institutos e tratados bem consolidados, como os do clima ou acordo nucleares. Mas a tática também consiste em tumultuar elementos do sistema internacional que possibilitam o avanço de potências multilaterais nas decisões geopolíticas, em especial no livre comércio internacional que não passa pelos EUA e nas ações de guerra localizadas. Ou seja, agora que o jogo dos organismos internacionais não favorecem mais os EUA, Trump busca terminar com a brincadeira, interditando o jogo como um todo. Por essa razão que os EUA promovem obstruções à OMS, mesmo a OMS estando correta em suas convicções científicas e tendo evitado a todo custo a politização da pandemia. Em meio à desinformação e mentiras do “vírus chinês”, Trump tumultua e atrapalha negociações multilaterais da tecnologia 5G chinesa, ameaçando retaliar países por simplesmente negociar livremente algum acordo comercial. É nesse sentido que se pode compreender, por exemplo, porque o Brasil promoveu, há alguns meses, obstruções nos acordos em torno da promoção da igualdade de gênero, mesmo não ganhando objetivamente nada com isso. 

Um exemplo mais contundente, recente e igualmente escandaloso foi a postura que o Brasil adotou para defender seu patrão norte-americano na possível investigação internacional sobre racismo no mundo, proposto por países africanos. A proposta do grupo de países era que a ONU criasse uma comissão de inquérito internacional para investigar responsabilidades internacionais nos crimes de racismo cometidos no mundo, incluído os EUA e o caso George Floyd. O governo brasileiro saiu ao resgate do presidente Donald Trump na ONU e alertou que “não se pode singularizar uma só região ou país do mundo ao tratar do racismo”. A declaração do Itamaraty foi feita durante uma reunião extraordinária do Conselho de Direitos Humanos da ONU, nesta quarta-feira. O governo brasileiro não dirigiu sequer uma palavra de apoio à família da vítima e não citou os protestos pelas ruas em todo o mundo. No seu lugar, preferiu indicar que era necessário também reconhecer o papel da polícia, como relatou Jamil Chade.

É nesse sentido que também pode se entender a recente decisão do Brasil em não participar de acordo internacional em torno do combate das Fake News.

Em sentido contrário ao adotado pelo Brasil, a Venezuela pratica uma diplomacia altiva, pró-ativa e aversa a qualquer tipo de submissão aos interesses imperialistas e coloniais, sempre reafirmando sua soberania e perscrutando os interesses nacionais venezuelanos e da solidariedade internacional. Não é à toa que os EUA se empenham tanto em desestabilizar o país caribenho a ponto de investir em golpes de estado, como o recente fracasso da invasão de mercenários pagos pelo impostor Juan Guaidó.

Ao contrário do Brasil e contrariando os EUA, a Venezuela aproveitou a ocasião na ONU e denunciou o governo Trump por racismo sistêmico. Embora pareça um tanto ingênuo esse tipo de acusação, ela se presta a marcar posições no tabuleiro internacional, coisa que importa quando os conflitos se acirram. Na mesma fala que a Venezuela acusa os EUA de racismo, é lembrado do boicote de Trump à OMS, servindo como alerta à segurança internacional e ao perigo biológico, ajudando a Venezuela a angariar simpatizantes, ainda que timidamente. Ato contínuo, vemos a Venezuela denunciar Jair Bolsonaro como responsável pelo atual estado de epicentro da pandemia de Covid-19. A acusação de negligência de Bolsonaro feita pela chancelaria bolivariana comandada por Jorge Arreaza cumpre, portanto, outro objetivo: isola o Brasil no cenário internacional. Um pária desses, aliado suicida do império americano, certamente fica em segundo plano nas formulações de eventuais políticas internacionais.

A postura da Venezuela não é isolada, e países como Cuba, Nova Zelândia, Argentina, Irlanda e Irã seguem pelo mesmo caminho, em prol de relações mais saudáveis de cooperação. Ainda que nem sempre muito expressivos na economia mundial, essas nações são capazes de impor políticas internacionais altivas, se alinhados pragmaticamente com potências do como Rússia e China.

Ao menos desde que Joseph Nye escreveu o seu “Soft Power” (leia na biblioteca IEG) nos anos 80, o mundo já debate sobre o declínio e fim do império norte-americano como potência hegemônica única. Como hipótese, Nye sugere que o mundo contemporâneo não verá mais uma única superpotência aplicando o ‘hard power’, mas verá um jogo muito mais complexo em sua teia geopolítica, que envolve técnicas mais sutis de ‘soft power’, típicas do que mais tarde viria a ser incorporado no conceito de guerras híbridas ou guerras não-convencionais. 

Não é sem razão que essa mudança vem após Francis Fukuyama ter contaminado o debate sobre o cenário político global com suas teses do fim da história. De fato, não foi pouca gente que anunciou o fim de tudo quanto é coisa, do fim das grandes narrativas e da luta de classes ao fim de modelos econômicos alternativos ao modelo liberal de mercado das democracias burguesas, do fim da arte ao fim do próprio planeta terra como fonte de recursos. Se, por um lado, Fukuyama se enganou por completo, por outro, sua intuição de que algo mudava inexoravelmente se mostrou verdadeira. A hegemonia estadunidense se acelera rumo ao fim, menos por sua própria ação imperialista do que por pequenas ações multilaterais que operam em conjunto com a grandeza necessária de uma diplomacia internacionalista.

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