Torcidas Organizadas, população politizada

Luã Reis – No domingo (21/06), mais uma vez, as Torcidas Organizadas saíram às ruas para protestar contra Bolsonaro. Os coletivos de torcedores tem assumido um papel destacado na luta contra o governo. Não se trata de um surto cívico, as organizadas manifestam nas ruas muito do que já expressaram nas arquibancadas.

As torcidas organizadas não se politizaram agora. Toda trajetória da organização dos torcedores foi marcada por uma relação ambígua com os poderes estatais e as diretorias dos clubes. Ainda que seja uma história longa e documentada em todo o planeta, com especificidades em cada localidade, a aparição das TO’s na cena política causa inquietação, desconfiança e até mesmos apelos para repressão e criminalização, tanto da mídia quanto de lideranças políticas.

O princípio na Ditadura Militar

As primeiras Torcidas Organizadas no Brasil surgiram no Rio de Janeiro, no final dos anos 20 e no início da década de 30, junto com a massificação do esporte e profissionalização dos atletas. Essas primeiras torcidas eram ligadas às diretorias dos clubes e organizadas ao redor de uma figura proeminente, inseridos na lógica de “um clube, uma torcida e um líder de torcida.” Uma organização condizente com a estrutura da sociedade e política brasileira na Era Vargas. Esse modelo durou até, aproximadamente, meados dos anos 60.

Na metade da década de 60, a juventude se afirmou pelo mundo. As maiores torcidas organizadas nasceram nesse contexto, ressaltando o poder da juventude nos nomes com “jovem”. A juventude lança um novo modelo de torcida, independente, contrastando com as velhas guardas que eram ligada aos cartolas. As torcidas jovens e independentes, contudo, não abandonam a vida no clube, pelo contrário, exigem fazer parte dela. Os clubes eram altamente militarizados, de dirigentes às comissões técnicas havia capitães, majores, coronéis e generais. As torcidas eram oposição e resistência.

Com os anos 70, se organizou o campeonato brasileiro, popularizando e consolidando essa maneira de torcer. As torcidas se multiplicavam, se conheciam, se reconhecerem e se aliaram. A festa era cada vez mais carnavalizada, as marchinhas são substituídas pelos sambas-enredo. O povo em geral e a juventude em particular experimentavam nos estádio o que a ditadura militar controlava e reprimia na ruas. 

Com o fim do chamado “milagre brasileiro”, a crise econômica acentuou a violência no sociedade. As torcidas não ficaram de fora: brigas e confrontos se tornavam mais comuns.

Não só no Brasil, tragédias emblemáticas aconteceram na Inglaterra e na Itália no início dos anos 80. O governo inglês responderia aos desastres com a criminalização das torcidas, na lógica neoliberal de repressão a cultura popular. Na Itália, as torcidas de extrema-direita passam a dominar as curvas das arquibancadas.

Gaviões da Fiel: manifestando pelas Diretas já em 1981

No Brasil, as Torcidas Organizadas se manifestavam pela derrubada da ditadura militar. Os jogadores da democracia corintiana, liderados por Sócrates, afrontavam o regime no clube, enquanto a Gaviões da Fiel era pioneira na defesa da Anistia aos perseguidos políticos. Os corintianos também defenderiam as Diretas, já em companhia de outras torcidas organizadas em diferentes estádios.

Redemocratização, violência e perseguição tucana

O fim da ditadura e a redemocratização tornariam as expressões das arquibancadas ainda mais diversas. No Brasil x Chile de 1989, no Maracanã, famoso jogo da fogueteira, uma faixa pedia “Fora Pinochet” e fazia campanha para Lula. 

Brasil x Chile 1989: “Fora Pinochet”

O assassinato do líder da recém fundada Mancha-Verde no final dos anos 80 marcou uma inflexão na escalada de violência: a dinâmica das vinganças tornou as brigas mais violentas e frequentes. As alianças e rivalidades se aprofundaram nessa lógica.

O ideário neoliberal, no qual problema social é caso de polícia, atingiu em cheio às organizadas. Parlamentares, membros do Ministério Público e delegados passam a perseguir e impor restrições às organizadas. O apoio midiático a criminalização das torcidas e violência estimulou essa perseguição, do qual muitos obtiveram proveitos eleitorais. A criminalização das organizadas seria a política pública oficial dos Governos do PSDB em São Paulo. Proibido de bandeiras à instrumentos musicais, os tucanos tornaram São Paulo o túmulo das arquibancadas. As torcidas “extintas” nas canetadas se reinventaram em termos legais e estruturais de várias formas, especialmente como escolas de samba em São Paulo.

Uma abordagem diferente foi a do governo Brizola que criou o Grupamento Especial de Polícia dos Estádios, o GEPE, tentando construir pontes entre policiais e torcedores. O governo tucano de Marcelo Alencar, sucessor de Brizola, alinhou a política para as arquibancadas com a de segurança pública. O tucano implementou no Estado do RJ a “Lei Faroeste” com bonificação por auto de resistência: o PM recebia recompensas por cada cabeça entregue ao Estado. Como a as Torcidas Organizadas poderiam escapar dos efeitos dessa selvageria?

No fim dos anos 90, as torcidas já eram extremamente organizadas: alianças até em nível internacional, com símbolos definidos, bandeiras históricas, grandes caravanas, conectadas a internet. As torcidas passam a ser objeto de estudos acadêmicos. Buscando legitimidade com a população, as organizadas fizeram contatos políticos e passaram a realizar ações sociais, como campanhas contra a fome e distribuição de agasalhos.

A Era petista e o golpe de 2016

Uma das primeiras leis do Governo Lula foi o Estatuto do Torcedor, que diferente de leis anteriores da Nova República, como a Lei Pelé, a Lei Zico e a Lei Geral do Esporte, garantia direitos para os torcedores. O estatuto é contraditório: por uma lado resguarda o torcedor contra abusos de cartolas e das federações, pelo outro, não reconhece plenamente a cultura torcedora. As contradições da Era Lula também apareciam na lei para os torcedores. Mas, como nunca antes na história desse país, os representantes das Torcidas Organizadas frequentavam o Palácio do Planalto.

NETVASCO - <b>Vascaíno ilustre, presidente Lula é homenageado em ...
Bandeirão do Lula da Força Jovem Vasco

A escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014 colocou em evidência o famigerado Ricardo Teixeira, presidente da CBF há décadas. A Globo liderava a blindagem midiática ao escroque Teixeira, que sequer gostava de futebol. Quando estourou os escândalos da FIFA em 2011 coube as Torcidas Organizadas denunciarem o gângster amigo da Globo. As organizadas foram fundamentais para queda do Presidente da CBF.

Torcida do Internacional protesta contra Ricardo Teixeira

Dilma, preocupada com a Copa do Mundo de 2014, institucionalizou o que Lula começou, criando a Associação Nacional de Torcedores Organizados, ANATORG. A associação reúne mais de 200 organizadas de clubes de todos os Estados da federação, com o lema “Fale conosco, não sobre nós”, reivindica o espaço negado no debate público. A ANATORG era vinculada ao Ministério dos Esportes, além de líderes das torcidas também participava pesquisadores e diferentes representantes do poder público. Com o golpe de 2016, a ANATORG fica por conta própria, as torcidas sem canais de comunicação com o poder público e ressurge com força as ideias de criminalização das TO’s.

Um dos mais dedicados perseguidores dos torcedores foi o Secretário de Segurança Pública de SP, o tucano Alexandre de Moraes. Em uma ação bisonha e eleitoreira, Moraes murou com as próprias mãos a seda Gaviões da Fiel. A torcida corintiana cometia o “crime” de denunciar o roubo da merenda escolar realizado pelo Presidente da ALESP, o também tucano Fernando Capes. Os corintianos e outras torcidas também manifestaram contra o golpe. O “Fora Temer” tomou várias arquibancadas do país. A unânime rejeição ao governo Temer disfarçou essa contundente manifestação.

A atual luta contra o bolsonarismo

A polarização na sociedade brasileira se refletiu nas arquibancadas com o aparecimento das torcidas antifascistas e no renascimento de uma linguagem política combativa das organizadas tradicionais. Embora as organizados tenham receio que a partidarização crie divisões na torcidas, não há por onde escapar. Nesse momento o projeto de vez para extinguir as Torcidas Organizadas seja do ex(?)bolsonarista Major Olimpo.

Palmeirenses se unem a corintianos sob aplausos para protesto ...
Torcida antifa do Palmeiras contra o Bolsonarismo

Bolsonaro é um inimigo das torcidas organizadas, pois ataca diretamente às organizações populares e a cultura popular. Ainda que, provavelmente, membros de organizadas tenha votado no fascitóide por conta do apelo anti-sistêmico do candidato, ele não os representa, pelo contrário. Bolsonaro é o sistema que sempre procurou esmagar os torcedores organizados.

 O bolsonarismo é a repressão organizada contra os povos indígenas, os sindicatos, os partidos de esquerda, os camponeses, os favelados, os movimentos sociais e também as torcidas organizadas. Se os outros setores atacados permanecem atordoados, relativamente imobilizados, os torcedores mais uma vez assumem um papel de vanguarda. Se Bolsonaro é o resquício renovado da ditadura militar, cabe as organizadas se renovarem também para o combate pela própria existência. As Torcidas Organizadas tem a experiência nesse combate. A participação organizados de torcedores em manifestações públicas demonstra um alto grau de politização da sociedade. Uma tendência a radicalização da população, que aceita cada vez mais propostas combativas, que nada interessa aos donos do jogo.

Torcidas de futebol se unem em protesto contra Bolsonaro - GAZETA ...
Flamengo Antifascista contra o bolsonarismo

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