Hoje na história: Lamarca assassinado pela ditadura

Via Diário GM

O dia 9 de maio de 1969 ficou marcado em São Paulo pelo roubo simultâneo de dois bancos por militantes de esquerda, liderados pelo Capitão Vermelho.

Um dos maiores nomes da guerrilha no Brasil foi o Capitão Carlos Lamarca, militar carioca envolvido com a luta armada contra a ditadura nos centros urbanos. Conhecido como grande atirador, Lamarca iniciou sua vida pública no exército e lá ganhou grande destaque por sua competência.

Em 25 de janeiro de 1969, pouco tempo depois do decreto do AI-5, Lamarca, decidido que mudaria de lado e se associaria à guerrilha contra o exército, tomou um caminhão do quartel de Quitaúna, em Osasco, onde servia, e o encheu com as metralhadoras e munições disponíveis para sua saída sumária. Resultado: o desertor fugiu do quartel dirigindo um caminhão carregado de armas para os guerrilheiros.

Lamarca mantinha contato com um ex-sargento do exército, Onofre Pinto, que comandava o grupo de guerrilha conhecido como Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Após a fuga do exército, Lamarca decidiu integrar a Vanguarda e assumir a luta contra a Ditadura. Lá, conheceu Iara Iavelberg, militante comunista que seria sua esposa e companheira de lutas.

Na VPR, Lamarca entregou os 63 fuzis e 10 metralhadoras que roubara do Exército Brasileiro, além dos quilos de munição, e propõe a tomada de ação no centro urbano de São Paulo. Na época, uma das principais questões para os grupos de guerrilha era encontrar formas de financiar as ações e a subsistência dos guerrilheiros sem roubar do povo, que já era cotidianamente surrupiado.

Diante do dilema, se convencionou que uma forma justa de arrecadação de fundos era o roubo de grandes bancos, que lucravam à custa do trabalho alheio e formavam grandes conglomerados de magnatas que controlavam as forças políticas. Para os guerrilheiros, o assalto a banco era visto como o retorno do dinheiro do povo, roubado dos ricos.

A ação de Lamarca se deu em 9 de maio de 1969, quando o capitão liderou um plano em dois polos em que os grupos entraram armados e renderam, simultaneamente, dois bancos na capital paulista: o Banco Mercantil de São Paulo e o Banco Itaú. Os dois assaltos foram vitoriosos e a VPR conseguiu arrecadar fundos para manter o braço armado.

A ação de Lamarca marcou o início de um período de lutas e repressão nos centros urbanos do Brasil. São Paulo seria palco de diversos conflitos armados e assaltos a banco, na constante luta dos extremistas de esquerda contra o regime de exceção implantado pelos militares.

CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE
Por memoriasdaditadura

Carlos Lamarca foi morto por agentes do Estado brasileiro no dia 17 de setembro de 1971, em Ipupiara (BA), na região de Brotas de Macaúbas, sertão da Bahia, na chamada “Operação Pajussara”, que contou com diversas forças de segurança em uma ação conjunta para capturar o “Capitão da Guerrilha”, como ficou conhecido o líder da VPR e, posteriormente, do MR-8. O comandante do DOI-CODI de Salvador e Chefe da 2ª Seção do Estado-Maior da 6ª Região Militar, major Nilton de Albuquerque Cerqueira, reuniu um efetivo de mais de duzentos agentes militares e policiais, de órgãos como o Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS/SP), Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA), Centro de Informações do Exército (CIE), Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), Força Aérea Brasileira (FAB), Departamento de Polícia Federal da Bahia (DPF/BA) e Polícia Militar da Bahia (PM/BA), que invadiram a região de Buriti Cristalino, no dia 28 de agosto de 1971, em busca de Lamarca. O episódio, uma das maiores ofensivas dos órgãos de repressão da ditadura brasileira, marcou, com o seu desfecho, o início de intensa disputa pela memória e pela história de Lamarca, que foi um dos principais líderes da luta armada contra a ditadura. As investigações realizadas pelos órgãos do Estado brasileiro permitiram constatar que era falsa a versão divulgada oficialmente à época dos fatos. De acordo com essa versão, Lamarca teria morrido em um tiroteio travado contra as forças de segurança. Foi morto, com Lamarca, José Campos Barreto, o Zequinha, que havia sido uma importante liderança sindical em Osasco (SP), nas greves de 1968. A versão dos acontecimentos que culminaram na morte dos dois ganhou força à época. Os jornais noticiaram a morte de Lamarca como uma grande vitória das forças de segurança contra a “subversão” ao regime militar. O Jornal do Brasil, por exemplo, na edição de domingo, 19 de setembro de 1971, destacava que, com a morte de Lamarca, chegava ao fim a “trilogia de líderes subversivos brasileiros”, em alusão aos militantes Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, mortos em 1969 e 1970, respectivamente. A Tarde, periódico publicado em Salvador, reforçou a versão divulgada pelo Exército, destacando, na edição de 20 de setembro, que não houve feridos no tiroteio travado entre Lamarca e os agentes das forças de segurança, “apesar de ter Carlos Lamarca puxado o revólver, na tentativa de evitar que agentes de segurança se aproximassem dele”. O Globo registrou que a “morte de Lamarca representava muito mais que a eliminação de um líder terrorista, significa o fim de um mito”. A partir de pesquisas realizadas em arquivos como o do Serviço Nacional de Informações e de outros órgãos da repressão, de novas informações surgidas de depoimentos, além do parecer elaborado pelos peritos Celso Nenevê e Nelson Massini, após a exumação dos restos mortais de Carlos Lamarca, em 18 de junho de 1996, ficou evidente que a versão divulgada à época dos fatos não se sustentava. A operação militar que logrou localizar e matar Carlos Lamarca se inseriu em um complexo conjunto de ações militares. As forças de segurança recorreram a um conjunto de ações irregulares e ilegais, baseadas na prática de prisões arbitrárias e ilegais, tortura e execuções. O caminho percorrido por esses agentes do Estado até a execução de Lamarca foi marcado por perseguições, tortura e mortes, como as de Iara Iavelberg, José Campos Barreto (Zequinha), Luiz Antônio Santa Bárbara, Otoniel Campos Barreto, Nilda Carvalho Cunha e Esmeraldina Carvalho Cunha. A investida de agentes do DOI-CODI de Salvador sobre o apartamento em que se encontrava Iara Iavelberg, companheira de Lamarca, em 20 de agosto de 1971, que resultou na morte dela e possibilitou a prisão de militantes que estavam no local, foi etapa decisiva na busca por Lamarca. No passo seguinte, o Comandante do DOI-CODI e chefe da 2ª Seção do Estado-Maior da 6ª Região Militar, major Nilton de Albuquerque Cerqueira, após reunir um grande aparato militar e policial, invadiu a região de Buriti Cristalino, em 28 de agosto de 1971. Zequinha Barreto havia levado Lamarca para esta região, Buriti Cristalino, em Brotas de Macaúbas (BA), sua terra natal. Seu pai, o lavrador José de Araújo Barreto, então com 64 anos, tinha uma propriedade no local, e Zequinha e seus familiares eram conhecidos de todos. Recém integrados ao MR-8, vindos da VPR, Zequinha havia pedido autorização para levar Lamarca para lá, onde pretendiam estabelecer as bases para uma futura guerrilha rural. Em poucas semanas, no entanto, foram localizados. No dia 28 de agosto, na invasão de policiais do DOPS-SP, comandados pelo delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, e da equipe do CISA à propriedade da família Barreto, Olderico Campos Barreto, um dos irmãos de Zequinha, foi ferido no rosto; outro irmão, Otoniel, de 20 anos, foi morto com vários tiros. Os agentes da repressão buscavam por Lamarca e, para isso, torturaram Olderico Campos Barreto, agrediram sua família e aterrorizaram os vizinhos e outras pessoas da localidade. Com o barulho de tiros, helicópteros e deslocamento de tropas, Lamarca e Zequinha abandonaram o acampamento onde se encontravam, a cerca de dois quilômetros da casa dos Barreto. Empreenderam fuga pelo sertão, durante 20 dias. Exaustos, feridos e cada vez mais cercados pelas tropas da operação Pajussara, chegaram ao pequeno povoado de Pintada, em Ipupiara (BA). Moradores do vilarejo contaram ter visto Zequinha carregando nos ombros o ex-capitão Lamarca, que se encontrava bastante debilitado. Segundo Olival Barreto, irmão mais novo de Zequinha, o paradeiro dos militantes foi informado pelo juiz do Fórum de Brotas de Macaúbas, Antônio Barbosa, às tropas do Exército: […] a gente só ficava ouvindo, ó, Zequinha e Lamarca passou em tal lugar, passaram em Ibotirama, passaram no Mocambo, passaram não sei aonde. Só que, por infelicidade, Zequinha foi passar num local que chama Três Reses, onde têm parentes nossos, e um infeliz, lá dos Três Reses, que é até primo da gente… Então, esse rapaz [Antônio de Virgílio] foi avisar, em Brotas, que Zequinha tinha passado lá, com o Lamarca. Como o Exército tinha oferecido esses prêmios, dinheiro, pra quem denunciasse, esse rapaz foi avisar em Brotas. E o juiz [Antônio Barbosa], lá em Brotas, pega um carro e vai até Seabra, e vai ligar, lá pra 6ª Região do Exército, pra voltarem. Aí, eles já voltaram com certeza de que eles já estavam lá.v Na tarde do dia 17 de setembro, enquanto descansavam à sombra de uma baraúna, árvore típica da região, Lamarca e Zequinha foram surpreendidos pela tropa comandada pelo major Nilton de Albuquerque Cerqueira. O relatório da Operação Pajussara, elaborado pela 2a Seção do Quartel-General da 6a Região Militar do IV Exército, sugere que Lamarca e Zequinha, ao serem finalmente localizados, não ofereceram resistência: O segundo [Lamarca] levantou-se, tentando também correr, carregando um saco. Esse foi abatido quinze metros à frente, caindo no solo, enquanto o que dera o alarme [Zequinha Barreto], apesar de ferido, prosseguiu na fuga. […] Pouco adiante, “Jessé” [Zequinha Barreto] virou-se para o elemento que o perseguia, atirando-lhe uma pedra, recebendo então a última rajada. […] A condição física do combatente de A G, dos quadros, inclusive dos oficiais superiores, é também base para o sucesso da operação. […] Esta afirmativa é baseada também no estado físico em que se apresentavam os dois terroristas ao final da ação, totalmente esgotados.vi Lamarca foi executado por agentes do Estado brasileiro com sete tiros, disparados de diversas direções, inclusive por trás, o que atesta que foi cercado. Segundo moradores, seu corpo e o de Zequinha Barreto foram colocados à exposição pública na praça de Brotas de Macaúbas, onde foram chutados por militares e policiais, que se gabavam de tê-los executado. Depois, foram colocados em um helicóptero e levados para a capital, Salvador, onde foram sepultados, no cemitério do Campo Santo. Diligência da CNV a Salvador, entre os dias 4 e 5 de agosto de 2014, localizou funcionários do cemitério responsáveis pelo sepultamento de Lamarca. Passadas décadas, eles lembravam com precisão do enterro de Lamarca, tamanho o aparato repressivo que cercou o episódio. Um deles, que colocou uma lápide na sepultura de Lamarca, foi repreendido por isso. Eles contaram que por dois anos, até a exumação seus restos mortais, em setembro de 1973, quando foram trasladados para o Rio de Janeiro, agentes se revezaram, vigiando o túmulo, para evitar que ali virasse um local de reverência. O coronel Luiz Arthur de Carvalho, Delegado Regional da Polícia Federal, foi o responsável pelos sepultamentos de Lamarca, Zequinha Barreto e seu irmão, Otoniel. Em 1996, foi feita nova exumação, para que fosse feita perícia, por solicitação da família. O parecer do perito Celso Nenevê e do legista Nelson Massini foi decisivo para o processo de Lamarca (038/96) voltar à pauta da CEMDP. Segundo os peritos, Lamarca, cercado, recebeu tiros de ambos os lados, inclusive por trás, sendo que o tiro fatal foi de cima para baixo. O que nos leva à presunção de que, provavelmente abatido pelas costas, caído, foi mortalmente atingido.vii O processo de Lamarca foi deferido em 11 de setembro de 1996, com parecer de Suzana Keninger Lisbôa, por 5 votos a favor e 2 contra. Foi decisiva para o caso a interpretação do artigo 4º da Lei nº 9.140/95, que considerou que o legislador, ao se referir às mortes “em dependências policiais ou assemelhadas”, buscava definir que a pessoa em questão estava na esfera do domínio dos autores dos crimes. Sob o domínio de agentes do Estado brasileiro, Lamarca e Zequinha Barreto deveriam ter sido detidos, nunca executados. A morte de Carlos Lamarca é também relatada no capítulo 13, Casos Emblemáticos, deste Relatório.

CONCLUSÃO DA CNV
Diante das investigações realizadas, conclui-se que Carlos Lamarca foi morto por ação de agentes do Estado brasileiro em um contexto de sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela Ditadura Militar implantada no país a partir de abril de 1964. Recomenda-se a continuidade das investigações sobre as circunstâncias de morte para a identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos.

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