O fascismo nasce no interior da “democracia liberal”

Por Maurício Korenchendler

“Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram”. Karl Marx

O liberal Jason Stanley, em seu livro Como funciona o Fascismo [1], acerta, inconsciente ou por omissão, num ponto: o fascismo nasce na democracia liberal.

Stanley estrutura o livro na defesa do modelo ideal de democracia, isto é, o liberal norte americano, e para garantir esse altíssono arquétipo, acredita construir uma reflexão profunda contra o fascismo.

É aqui que está a ação inconsciente ou a deliberada omissão do autor: é no oxímoro da democracia liberal, no auge de suas contradições e paradoxos que germina e amadurece o fascismo.

O livro de Stanley segue lógica similar ao filme Democracia em vertigem da diretora brasileira, Petra Costa, embora no primeiro fique mais evidente o adjetivo da democracia que o autor defende.

Apesar de importantíssimo o debate envolvendo as armadilhas nas quais a esquerda caiu (e continua se afundando) na defesa de valores universais como alheios à dominância, a presente reflexão tem um escopo mais específico: esclarecer como o desenvolvimento do fascismo é permitido e facilitado nos marcos de um determinado modelo político de democracia.

Nesse sentido, superando o debate sobre a imposição de universalidade de valores burgueses, a elucidação em questão já partirá do pressuposto da real relativização da democracia brasileira, isto é, compreenderá como principio básico que o valor de democracia hegemônico atual, incluindo o brasileiro, longe de ser um cânone universal, na verdade é o padrão democrático liberal, portanto, o referencial da burguesia (ou se for preferível: dos empresários, concentradores de renda donos dos meios de produção).

Reforçando tal pressuposto, um dos maiores representantes da burguesia no Brasil, Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos deputados, em discurso no Wilson Center, Estados Unidos, no dia 15 de novembro de 2019, alçou o liberalismo ao topo do mundo ao rogar que este “centenário do Nobel da paz do presidente Woodrow Wilson inspire, ilumine e una os amantes dos valores universais, aqueles que, diferentemente dos que se refugiam nos preconceitos, se fortalecem nas diferenças” para em seguida dizer serem esses os valores que uniriam Brasil e Estados Unidos, lembrando finalmente, que muito além dos produtos que compõem a balança comercial brasileira e estadunidense, “o principal produto que importamos dos Estados Unidos é o modelo de democracia liberal”. [2]

O deputado habilmente esconde o autoritarismo liberal cunhando a expressão “valores universais” ao mesmo tempo em que impõe o modelo liberal como única forma viável de democracia.

As entrelinhas do trecho do discurso de Maia são paradoxais, da mesma forma que o são os valores democráticos liberais.

Obviamente não se trata de exigir que Maia age diferente de um liberal que representa os interesses empresariais do capital.

Outro atual e importante representante dos interesses de determinados setores empresariais, em 2019, o Vice Presidente Hamilton Mourão, dirigindo-se a uma plateia de empresário, em São Paulo, disse que “fora da democracia liberal não há futuro. Vamos lembrar que a democracia na Primeira Guerra Mundial venceu o imperialismo, venceu o nazifascismo, e venceu o pior flagelo que enfrentamos no século passado: o comunismo internacional. Fé na democracia liberal. É por meio dela que vamos achar a solução que precisamos”[3].

Já em 2020, no final do mês de fevereiro, no Estado de Santa Catarina, Mourão deixou grifada sua visão sobre o que chama de democracia brasileira ao discursar que a sua missão é “fazer do Brasil a mais vibrante e próspera, e ainda deixar muito claro, democracia liberal do Hemisfério Sul. Aqui ninguém está atentando contra a democracia, isso tem que ficar muito claro” [4].

Pois bem, uma vez evidente que os representantes do empresariado identificam a democracia liberal como valor universal, cabe demonstrar que é nesse marco liberal que o fascismo germina, floresce e destrói a abstração de uma democracia liberal, com pouca ligação com a realidade.

O fascismo é, portanto, a forma nua e crua do empresariado governar, o rosto sem maquiagem da ditadura da classe burguesa mais recrudescida.

O fascismo é a realidade da imposição capitalista enquanto a democracia liberal é um véu, uma abstração idealista, que esconde o verdadeiro semblante do capital, a face fascista.

E alguns acontecimentos confirmam tal assertiva na realidade brasileira.

A ascensão de Bolsonaro e da ala militar é mais um passo no processo de fechamento do regime liberal brasileiro iniciado, a rigor, com o golpe de 2016. E isso só é viável numa democracia liberal.

A alegoria marxiana da tragédia e farsa [5] repetidas na história aparece como uma dupla farsa histórica no Brasil.

Bolsonaro é tosco e precário nas suas falas e ações como assim o eram (e alguns ainda são) os anticomunistas de 64.

Duas farsas, alegoria para peças precárias no período da Idade Média, porém mesma finalidade: garantir sobrevida ao sistema capitalista tendo os militares como principais salvadores.

A social democracia deve ser encarada sob a perspectiva histórico dialética, isto é, contextualizada, identificando-se o porquê de sua possibilidade.

No auge desse modelo, o socialismo real soviético precisava ter suas conquistas ofuscadas ou distorcidas para que houvesse fundamento em classificar o modelo capitalista como o melhor – menos pior — diante do embate dicotômico capitalismo/socialismo.

Nesse sentido, a social democracia não é fruto da bondade dos capitalistas, mas de suas necessidades de frear uma real opção política de sociedade.

Atualmente, a defesa do modelo social democrata parece deixar de lado a sua concretude, ou seja, sua historicidade, o que acaba por impregná-la de abstração e idealismo kantiano e/ou hegeliano.

Pois bem. A premissa aqui não é discutir o nível ou a existência de um Estado social democrata no Brasil, mas comprovar que é no modelo genérico de Estado Democrático de Direito que o fascismo se desenvolve e fortalece.

O que movimenta a história é a luta de classes.

O projeto do capital pode encontrar um grande obstáculo, como uma revolução ou pequenos obstáculos que lhe impede de alcançar seus objetivos integralmente.

A posse de Jango e as eleições do PT encontram-se na segunda categoria.

A assunção da direção do Estado pelas vias estabelecidas pelo poder dominante não garante o seu pleno controle nem é certeza de transformações.

O Estado Democrático de Direito é um Estado burguês, logo sua estruturação é burguesa, inclusive seu sistema eleitoral.

Vencer por meio desse sistema não é o mesmo que tomar o poder político do Estado.

Se qualquer possibilidade de mudança advém das ações dos variados agentes políticos, na direção do Estado ou não, obviamente as forças que se encaram como derrotadas se articularão para minimizar ou impedir tais ações.

Em outras palavras, quando o capital se vê derrotado (impossibilidade de aplicação integral de seu projeto), uma reorganização das suas forças é feita e é nesse necessário que a extrema direita ganha força.

Salvar o sistema capitalista a qualquer custo.

Foi assim como Luís Bonaparte, Mussoloni, Hitler, Militares em 64 e Bolsonaro hoje.

Escondendo-se por detrás das defesas dos direitos individuais fundamentais do Estado democrático de Direito, os agentes da direita se fortalecem e violam todo tipo de ponderação em prol do coletivo.

A liberdade de expressão individual é colocada como principio inquebrável e superior a tudo, exceto se for um esquerdista fazendo qualquer tipo de defesa, mesmo se vilipendia a história dos negros, dos quilombolas, dos homossexuais etc.

A vitória dos valores universais é uma vitória do capitalismo e não da social democracia, uma vez que com base nessa universalidade o capital encontra os meios para desmontar tudo que foi construído sob a pauta da solidariedade social e da coletividade.

Os valores universais só o são na teoria, no discurso, jamais na prática.
E a prática é o critério da verdade.

Significa reconhecer a continuidade da luta de classes e que a social democracia ou o Estado de bem estar social ou Estado democrático de direito não são mais necessários no presente momento histórico e os valores colocados como universais, mesmo que não sejam, acabam servindo de arma para quem domina, afinal, as ideias dominantes em uma sociedade são as ideias da classe dominante.

O que está em vertigem não é a democracia, não enquanto valor universal [da democracia].

É a democracia liberal que se encontra em franca decadência!

Diante da desnecessidade do atual modelo de Estado, sua utilidade será estritamente limitada: colocar-se como referencial de possibilidade para quem se coloque contra os avanços do capital e servir de impulso para a construção de um novo modelo de Estado que autores como Esther Solano, Lincoln Secco e Rubens Casara já identificaram, respectivamente, como desdemocratização [6], “Estado Policial de Direito” e Estado pós democrático.

Laymert Garcia, em entrevista à revista Carta Campinas, afirmou que o Brasil não passa somente por um golpe de Estado, mas que já vive um Estado de Exceção, num momento similar à queda da República de Weimar e a ascensão do nazismo.

Vários são os intelectuais que classificam o período do Brasil pós Golpe 2016 como um momento de ruptura com a noção de Democracia Liberal firmada através do pacto constitucional de 1988.

É no Estado Democrático de Direito que Bolsonaro incentivou e apoiou manifestações que pediram o fechamento do Congresso, a institucionalização de um novo AI-5, sem contar todo apoio à execução de Lula e Dilma até a primeiro do primeiro e o impedimento da segunda.

É urgente que leiamos a realidade como ela deve ser lida, sob a ótica do conflito de classes para que assim possamos definir estratégias e táticas numa luta que sempre será cotidiana e histórica.

Bolsonaro não é o que o capital idealiza, mas sim o que precisa.

Obviamente não se deve desconsiderar as articulações e desejos dos agentes em disputa, no entanto, diante do que o capital vê como derrota, ainda que seja a eleição de partidos liberais de esquerda (que não lutam contra o capital, apenas acreditam ser possível reformá-lo), a radicalização do regime burguês se torna a finalidade precípua.

Leia-se, o recrudescimento da ditadura de classe da burguesia.

Sem devaneios e falsas crenças é isso que o bolsonarismo, com ou sem Bolsonaro, viabiliza.

Os auspícios ignorados (ou desacreditados) são mais retumbantes no momento atual brasileiro em que, a despeito de uma análise conceitual pormenorizada das instituições ‘democracia’, ‘ditadura’ e ‘devir democrático’, marca exício e sepulcro da angusta democracia liberal, evidenciando em altíssono e bom som a consolidação de um processo ditatorial em curso no Brasil.

À defesa cega de uma universalidade de valores que na prática funciona para um grupo pequeno deve ser acrescentadas doses cavalares de materialismo histórico dialético para enfim compreender como funciona a realidade, sem devaneios.

E a realidade é que tais valores universalizados não nos servem enquanto discursos.

Apenas numa sociedade sem distinções de classes é possível a existência concreta de valores universais como a dignidade humana.

Afinal, a prática permanecerá sendo sempre o critério da verdade.

[1] STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo, Editora J&PM, 1ª ed, Porto Alegre, 2018.

[2] https://static.poder360.com.br/2019/11/Discurso-rodrigo-maia-premio-WWC-NY-15nov2019.pdf

[3] https://exame.abril.com.br/brasil/fora-da-democracia-liberal-nao-ha-futuro-diz-mourao-a-empresarios/

[4] https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2020/02/28/mares-nao-estao-tranquilos-porque-videos-sao-divulgados-redes-sociais-se-encandeiam-diz-mourao.ghtml

[5] MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Napoleão; Editora Boitempo; São Paulo, 2011; pp. 25.

[6] GALLEGO, Esther Solano (org); O Ódio como Política: A reinvenção das direitas no Brasil; Editora Boitempo; São Paulo; 2018, pp. 14.

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