Washington e Londres tentam preservar a sua dominação sobre a Europa

Thierry Meyssan (via Rede Voltaire)

Hoje em dia, os segredos mais bem guardados são rapidamente revelados. Ora, esta semana, as cartas confidenciais dos Estados Unidos e da OTAN para a Rússia foram divulgadas e foram muito lidas. Enquanto o cenário da frente é dominado pelo ruído das botas da OTAN, os bastidores ocidentais são palco febril da organização de redes de vigilância dos Aliados pelos seus suseranos norte-americanos e britânicos. Já que Washington e Londres estão persuadidos que a Rússia não os atacará, mas tentará desviar seus Aliados.

As respostas dos Estados Unidos e da OTAN à proposta russa de Tratado que garanta a paz  foram reveladas pelo quotidiano espanhol El País, pretensamente graças a uma fonte ucraniana que temia ver o seu país transformado em teatro de confronto Leste-Oeste.

A resposta da OTAN corresponde, em todos os pontos, à apresentação que havia feito o seu Secretário-Geral, Jens Stoltenberg. Isso é normal, porque este texto havia sido submetido aos 30 Estados-Membros e não podia permanecer secreto durante muito tempo. De um lado, a Aliança propõe medidas para reduzir o risco de guerra nuclear, do outro, põe em causa o direito dos povos a dispor de si próprios na Transnístria (Moldávia), na Abecásia e na Ossétia do Sul (Geórgia) e, por fim, na Crimeia (Ucrânia).

Por outras palavras, os Aliados rejeitam o Direito Internacional. É por isso que eles não o evocam mais, mas dizem-se apegados a « regras » que apenas eles fixam. Eles entendem continuar sob a proteção dos Estados Unidos secundados pelo Reino Unido, mas não querem arriscar uma Guerra Mundial.

A dos Estados Unidos é, pelo contrário, uma surpresa. Era desconhecida de todos, incluindo dos Aliados e da Ucrânia. É por isso que, de acordo com o seu título, é um « não-documento» (sic) que não lhes deve ser mostrado e devia permanecer secreto. É, portanto, muito improvável que tenha sido revelado por uma fonte ucraniana. Só poderá ter sido norte-americana. Este « não-documento » tem a ver com « Os domínios de compromisso que permitem melhorar a Segurança ». Nele, Washington apresenta-se como recusando abrir mão seja do que for, embora disposto a negociar para congelar a situação actual. Ele manterá seus projectos sem tentar ganhar terreno.

Este documento lança luz sobre as recentes ações públicas da OTAN: campanha de propaganda denunciando uma iminente invasão russa, colocação de soldados em volta da Ucrânia e transferência de armas para a própria Ucrânia. Mas o mais importante está longe : estas tropas e estas armas não são capazes, de forma alguma, de resistir a uma invasão russa se ela tiver lugar. Por outro lado, esta atmosfera provoca pânico nos dirigentes europeus ( em sentido amplo, não apenas aos da União Europeia). Washington e Londres sabem que podem não responder ao fundo da exigência russa, de respeito pelos Tratados, e que Moscovo (Moscou-br) não os atacará por isso. O seu temor está noutro lado, tal como Vladimir Putin tentou em 2007 em Munique, Moscovo pode tentar derrubar os Aliados um a um. Ora, desta vez, o declínio do poderio dos EUA pode fazê-los reflectir. Eles poderão constatar que não tem grande coisa a tirar da sua vassalagem. É por isso que a CIA norte-americana e o MI6 britânico reorganizam as redes de stay-behind (retaguarda-ndT com o assentimento de alguns dirigentes europeus que se imaginam a viver em breve em países ocupados pela Rússia.

No fim da Segunda Guerra Mundial e antes mesmo da criação da OTAN, os Estados Unidos e o Reino Unido imaginaram uma maneira de dominar o continente europeu ocidental até à fronteira Oder-Neisse, fixada pela Conferência de Potsdam, poucos dias após a tomada de Berlim pelos Soviéticos e a capitulação dos nazis. Foi esta fronteira que o Primeiro-Ministro britânico Winston Churchill qualificou, em 1946, de « cortina de ferro » dividindo o continente europeu em dois. Depois o Presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, organizou a Guerra Fria para prevenir um eventual avanço dos Soviéticos na zona de influência que lhes havia sido devolvida em Ialta e Potsdam. Os Norte-Americanos e os Britânicos tiveram a ideia de implantar redes de resistência no seio de administrações aliadas e de as preparar para entrar em ação durante a « inevitável » invasão soviética. Estas redes eram comandadas pelos Anglo-Saxões, mas os seus soldados eram nacionais anti-soviéticos, incluindo muitos sobreviventes dos exércitos nazis, reciclados para a « boa causa ».

Aquando da criação da OTAN, em 1949, estas redes euro-ocidentais foram nela incorporadas. Elas obedecem exclusivamente a Washington e a Londres com o assentimento de princípio dos Estados aliados que ignoram os detalhes das suas ações. Sempre que saem à luz do dia, promete-se dissolvê-las, no entanto perpetuam-nas sempre. O último « incidente » registado é a descoberta, em 2020, que todos os dirigentes dos países europeus eram escutados pela Dinamarca por conta da OTAN.

Além disso, a CIA e o MI6 estenderam estas redes à maior parte do planeta. Foram eles que organizaram a Liga Anti-comunista Mundial [5] durante a Guerra Fria, instalando ditaduras sangrentas de Taiwan à Bolívia, passando pelo Irão e pelo Congo.

As atividades da CIA fora do quadro da OTAN foram postas à luz do dia pelo Congresso dos Estados Unidos (Commission Church [6]) após a demissão do Presidente Richard Nixon. Estas redes desenvolveram-se de tal modo que conseguiram formar um Estado dentro do Estado, indo ao ponto de organizar o escândalo do Watergate para fazer tombar o Presidente dos Estados Unidos. O Presidente Jimmy Carter encorajou a continuação destas revelações e retomou o controle da CIA com o Almirante Stansfield Turner.

Centenas de livros foram consagrados, primeiro por jornalistas e hoje por historiadores, aos crimes da CIA e do MI6. Mas trata-se de livros e de teses sobre esta ou aquela operação. Alguns tentaram estabelecer catálogos recapitulativos destes acontecimentos, mas nenhum ousou escrever a história deste sistema e dos seus homens. Já que foram os mesmos homens que se movimentaram para os aplicar em diferentes lugares do planeta.

Os Presidentes Ronald Reagan e George H. Bush Sr encorajaram publicamente estas redes nos países do Pacto de Varsóvia, organizando vastas operações de sabotagem económica e militar. Só durante o colapso da URSS é que elas surgiram à luz do dia e foram chamadas a jogar um papel político. Estiveram muito activas na adesão à OTAN dos países da Europa Central, Balcânica, Oriental e Báltica. O apoio da Presidente letã, Vaira Vike-Freiberga, às manifestações nazis ou a entrada para o Governo ucraniano de líderes nazis não são portanto inexplicáveis acidentes de percurso, mas manifestações públicas de redes secretas que conseguem por vezes alcandorar-se ao topo dos governos.

No fim da Segunda Guerra Mundial, era evidente para todos que ela havia sido ganha pela União Soviética (22 a 27 milhões de mortos) com a muito relativa ajuda dos Anglo-Saxões (menos de um milhão de mortes para Estados Unidos e o Reino Unido, colónias incluídas). O Primeiro-Secretário Joseph Stalin —que havia eliminado os gulaks, depois os Mencheviques nos Gulags— forjou a reconciliação nacional e o sentimento nacional soviético em torno da igualdade de todos face ao sistema hierárquico de raças dos nazis (o racismo), dos Estados-Estados ( a segregação) e da África do Sul (o apartheid). Os debates sobre os « totalitarismos do século XX » e as resoluções negacionistas do Parlamento Europeu visam exclusivamente destruir a imagem que Stalin deixou amalgamando crimes nazis e soviéticos, embora de natureza muito diferente e de épocas diferentes (o grande período dos Gulags não terminou em 1953 com a morte do « paizinho dos Povos », mas em 1941 com o acordo entre Joseph Stalin e a Igreja Ortodoxa russa para defender o país. Não é, portanto, característico nem do stalinismo, nem da URSS). Permite mascarar a reciclagem dos piores criminosos nazis pela CIA e pelo MI6 em Estados do Terceiro Mundo. Mascara também a utilização de nazis pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido para estender a sua dominação, como, por exemplo, nos campos de concentração britânicos no Quénia durante os anos 50.

Todos estes elementos atestam que, para estabelecer o seu domínio sobre o mundo, os Estados Unidos e o Reino Unido não hesitam em reciclar os inimigos de ontem e em pedir-lhes para continuar o seu trabalho, sob as suas ordens, usando os mesmos métodos criminosos.

Tendo em mente este passado, a questão que se coloca é a do verdadeiro papel da OTAN. O pensamento dominante garante que esta aliança foi formada para lutar contra os Soviéticos. Mas, para além do facto de que estes acabavam de tomar Berlim e de vencer os nazis, jamais a OTAN os combateu, e hoje em dia os Soviéticos já não existem. Pelo contrário, a OTAN oficialmente só travou duas guerras convencionais, a primeira na Jugoslávia, a segunda na Líbia. Toda a sua história tem sido apenas a de se ingerir na vida interna dos seus membros para os alinhar com os interesses Anglo-Saxónicos por meio de revoluções coloridas (Maio de 68 em França), assassínios políticos (o Presidente do Conselho italiano, Aldo Moro) e Golpes de Estado (a Grécia dos Coronéis).

Nestas condições, é de se perguntar se todo este barulheira sobre uma possível guerra na Ucrânia não mascara outra coisa: um reforço do controle de Washington e de Londres sobre os seus aliados, no exacto momento em que estas duas potências estão em perda de velocidade.

Deve perguntar-se porque é que a Rússia, que em 17 de Dezembro de 2021 pedia o respeito da OTAN pela Carta das Nações Unidas, já não evoca mais essa questão. Washington e Londres não querem abandonar a sua posição de suseranos e os Aliados a sua posição de vassalos. Dissolver a OTAN não terá nenhum sentido já que cada membro entende jogar ainda o seu papel e não aceder à independência e à responsabilidade individual. Se a OTAN desaparecesse, uma estrutura idêntica suceder-lhe-ia. O problema não é, pois, a Aliança Atlântica, mas a maneira como os dirigentes Anglo-Saxões e seus aliados raciocinam.

É possível que esta diferença de pensamento não seja apenas cultural, mas tenha a ver com a revolução informática. As concepções verticais, as análises em zonas de influência, as teorias geopolíticas pertencem à era industrial, enquanto as decisões multipolares, as análises individualizadas e as teorias das redes são próprias das sociedades que se constroem hoje em dia. Neste caso, Moscou e Pequim simplesmente estão avançadas em relação aos Ocidentais.

Por fim, num dado momento, este ou aquele aliado deixará de se curvar perante Washington e Londres. As declarações pró-chinesas do Presidente polaco (polonês-br), Andrzej Duda, ou pró-russas do Presidente croata, Zoran Milanović, dão um cheirinho do que poderá acontecer. Em 1966, os aliados haviam ficado surpreendidos quando o Presidente francês, Charles De Gaulle, denunciou as redes stay-behind e expulsou as forças da OTAN do seu país. A sua reação será diferente hoje se um membro da OTAN, uma vez mais, sair do comando integrado sem colocar em causa o Tratado do Atlântico Norte. Comportando-se os dirigentes europeus muitas vezes como carneiros de Panurge poderão seguir este novo modelo e sair em bloco.

Seja como for, Moscou e Pequim continuam a sua aproximação. Não se trata para eles de se unirem para esmagar seja quem for, mas de defender, em conjunto, a sua visão das relações internacionais e do desenvolvimento económico para todos. Os Presidentes russo, Vladimir Putin, e chinês, Xi Jinping, emitiram uma nova declaração conjunta em 4 de Fevereiro. De passagem, eles ironizam com a pretensão ocidental em se reclamar como « mundo livre » baseado na democracia. Sublinham que, longe de serem perfeitos, os seus países dão muito mais importância aos seus cidadãos do que fazem os Estados Unidos e o Reino Unido.

Os Ocidentais, que apenas se ouvem a si mesmos, não ligaram ao discurso de Russos e de Chineses. Se o levassem a sério, não o desprezariam perguntando-se como é que estas pessoas podem falar assim, mas porque é que elas falam assim.

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