QUE TODAS SE ERGAM ENQUANTO TODOS SUBIMOS

Por Alice Viera

Os debates do 8 de Março giram em torno do empoderamento, da emancipação econômica por meio da igualdade salarial e do embate da luta da violência contra a mulher. Entretanto, a pauta da inserção da mulher no mercado de trabalho com equidade deve levar em conta o fato das negras terem sido escravizadas no Brasil e até hoje ocuparem em sua maioria cargos subjugados e desvalorizados; a luta pelo aborto legal e seguro não pode ignorar o histórico de políticas de esterilização contra mulheres periféricas e de cor e a busca pela não-violência contra a mulher deve abrir os olhos para índices que despencam entre brancas e aumentam de forma alarmante entre mulheres negras e pardas.

Nesta lógica, entender a origem de um primeiro momento do feminismo como movimento de mulheres brancas de classe média – que apesar de em alguma medida estarem à frente na luta abolicionista nos Estados Unidos, excluíram as negras de seus espaços de luta política logo em seguida – é essencial tanto para brancas como para as não-brancas. Apenas reconhecendo esta origem que se deu no norte global, em um contexto burguês, se entende que neste momento mulheres negras já viam a necessidade de formar suas próprias associações para pensar em si e na sua comunidade em um recente processo de abolição, e ainda ao contrário de suas irmãs brancas eram abertas a todas e todos – como nos mostra Angela Davis em Mulheres, Cultura e Política. Diluir esse debate em um único feminismo apresenta riscos, e explico. 

Na última FLUP, a Feira Literária das Periferias, em 2018, uma mesa mediada por Flávia Oliveira composta por Rokhaya Diallo, jornalista, autora, cineasta e ativista francesa e por Mame-Fatou Niang, pesquisadora sobre a França contemporânea, estudos pós-coloniais e transnacionais, mídia e planejamento urbano abordou o tema: “E quando eles não admitem que são racistas?”. Dentro de todo debate rico sobre as interseções que se dão no contexto do feminismo pelo mundo, uma análise de Mame-Fatou propôs uma reflexão sobre a universalização do corpo de uma mulher negra para fins representativos em cinema: “O corpo negro no Ocidente não é uma página branca. Ele deve ser decifrado antes de ser universalizado”. Neste ponto reside a importância da interseccionalidade do feminismo, especialmente nas análises e nas construção de políticas públicas.

Por isso a emancipação de algumas mulheres em detrimento de outras não pode ser considerada como natural, é necessário reconhecer as complexidades da luta de classes no contexto brasileiro. Para tanto, faz-se essencial o combate à reprodução de padrões do Brasil escravagista. Atualmente o saudosismo colonial se forja na presença de quartos de empregadas nas residências, em festas racistas de editoras de grandes revistas e na determinação implícita de que certas profissões são destinadas a serem exercidas por mulheres negras. Todos esses e tantos outros fatores nessa perversa divisão de trabalho devem ser combatidos.

A filósofa Helena Hirata articula, a partir de um ponto de vista situado no feminismo, autoras que debatem e teorizam interseccionalidade e suas implicações sociais, entre elas Kimberlé Crenshaw, e desenvolve a aplicação dos conceitos para a análise do trabalho do care, ou seja, o trabalho do cuidado. A autora fala sobre como os privilegiados são indiferentes a esta categoria de trabalho recebendo cuidados, mas sem a necessidade de cuidar. O care tem recorte de gênero, raça e classe em uma posição de pouco reconhecimento social e de baixos salários e tem como base de seu ciclo a desvalorização tanto de seu trabalho quanto dos seus destinatários. Na esfera doméstica o cuidado era realizado de forma gratuita pelas mulheres, mas com a “emancipação da mulher” para o mercado de trabalho, esse cenário foi modificado. Aquelas que podem transferir o trabalho a outra o fazem; e já as que não podem o integram como uma jornada a mais em sua rotina – o que algumas teorias feministas apontam como problemática.

Angela Davis escreve em Mulheres, Cultura e Política que “Se não tivermos medo de adotar uma postura revolucionária – se desejarmos, de fato, ser radicais em busca de mudança-, precisaremos atingir a raiz da nossa opressão. Afinal, radical significa simplesmente ‘compreender as coisas desde a raiz’. Nossa pauta de empoderamento das mulheres deve, portanto, ser inequívoca na contestação do capitalismo monopolista como maior desafio para a conquista da igualdade.” Para atingir esse radicalismo revolucionário é preciso respeitar as mulheres negras que produzem saberes por meio da leitura e difusão destes, fortalecendo a luta antirracista. Dito de outra maneira, enquanto o feminismo não abordar a morte de jovens pretos considerando o sofrer de suas mães, ele não será anticapitalista e tão pouco revolucionário.

Nesse caminhar, a arte sempre foi instrumento importante na luta do feminismo, e hoje o Brasil e o sul global efervescem em cultura e representatividade: a cantora Doralyce anuncia a primavera solar que será responsável por uma revolução feminista na América Latina ao mesmo tempo em que artistas negras retomam protagonismos invisibilizados. Em Salvador, o trio composto por Larissa Luz, Xênia França e Luedji Luna foi expressão dessa retomada. Estas artistas que estão em contato e dialogam com grandes intelectuais negras tais quais Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Joice Berth, Kênia Maria e Giovanna Xavier – que trazem um resgate da ancestralidade, relacionando os conceitos acadêmicos às vivências das mulheres reais e  traduzindo assim a luta.

As mulheres que encabeçaram o forte movimento do #elenão em 2018, ocuparam as ruas e os palcos no carnaval em 2019. Para que se ouça de fato as Marias, Mahins, Marielles e Malês este ano é essencial para a luta feminista organizada de forma anti-imperialista. Que as mulheres possam ter como prioridade o combate à lesbofobia, ao racismo, à pobreza, e a todas as opressões que pressionam as mais vulneráveis. 

As datas como o  25 de julho (Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha) e o 25 de novembro (Dia Internacional de Luta pelo fim da Violência contra a Mulher), devem servir para balizar as pautas – não para que se reúnam nas ruas apenas em manifestações performáticas e momentâneas, mas sim para que agendas e estratégias na disputa pelos espaços de poder sejam conquistadas.O feminismo liberal é insuficiente e serve ao capital. Quando aperta o cerco as mais afortunadas se unem e assistem de camarote o sofrer, a luta e o assassinato das outras. Representatividade vazia de luta revolucionária não é capaz de ruir com as estruturas, pois as sustenta. Que nos guiemos pelo exemplo de revolucionárias como Rosa Luxemburgo, pois nesse mesmo sentido, quanto mais difícil fica, as verdadeiras companheiras se aproximam e nos somamos à resistência. É com elas que canto “eu sozinha ando bem, mas com vocês ando melhor”.

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