MARXISMO, ACUMULAÇÃO PRIMITIVA E O AUMENTO DOS CASOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER DURANTE A QUARENTENA

Por Kissel Goldblum

A quarentena é uma sentença de morte para muitas mulheres. Não por causa do vírus, mas por ficar presa dentro de casa com um companheiro violento. Não apenas no Brasil, mas em todo o mundo têm aumentado os casos de violência doméstica contra as mulheres durante o período da quarenta. Depois de pouco mais de uma semana de quarentena no Reino Unido, nove pessoas foram mortas em casa. A França anunciou que colocará as vítimas de violência doméstica em hotéis após o vertiginoso salto no número de casos. No Estado de Oregon, nos EUA, o número de denúncias de violência doméstica dobrou. Da Rússia à Austrália vemos autoridades preocupadas com o aumento da violência contra as mulheres durante o período de quarenta. Como explicar essa violência?

Em sua incontornável obra “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, Engels nos mostra que o principal efeito do poder exclusivo dos homens no cerne da família, já entre os povos civilizados, é o patriarcado. A própria palavra família foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sob todos eles. A própria etimologia da palavra “família” tem origem no latim Familia, e significava  o conjunto das propriedades de alguém, isso incluía os escravos e os servos, Família deriva de Famulus ou Famuli, e significava “Servo ou escravo doméstico”. Engels afirma que a família monogâmica é a expressão da “grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo” e coincide com o triunfo da civilização moderna. A monogamia aparece na história sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, como a proclamação de um conflito entre os sexos. “A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos”. 

Na primeira parte parte de “O capital”, Marx afirma: “O descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a cruzada de extermínio, escravização e sepultamento das minas da população aborígine, o começo da conquista e o saque das Índias Orientais, a conversão do continente africano em campo de caça dos escravos negros: são todos fatos que assinalam a alvorada da era da produção capitalista. Esses processos ‘idílicos’ representam outros tantos fatores fundamentais no movimento de acumulação originária”. O acúmulo das forças de produção historicamente alienadas determinam a objetividade da organização social moderna, assim, apenas a compreensão das principais forças subjetivamente acumuladas na história podem mostrar a essência dos modos de produção atuais. Então, aí, revelamos seu calcanhar de aquiles, como Anaximandro mostrou: “a fonte de geração das coisas que existem é aquela em que se verifica também a destruição”.

Silvia Federici em seu livro “O Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva”, revela como o desenvolvimento histórico do capitalismo é concomitante à uma política de opressão e extermínio das mulheres. A “construção de uma nova ordem patriarcal, que tornava as mulheres servas da força de trabalho masculina, foi de fundamental importância para o desenvolvimento do capitalismo”. A autora mostra como não temos compreendido a importância do movimento de “caça às bruxas“ na constituição histórica da mulher e de sua influência no papel que ocupam hoje na sociedade. Os movimentos heréticos, comumente, entendidos como movimentos que “negavam a existência de deus”, na verdade, referia-se à movimentos que desejavam construir uma nova dinâmica econômica de produção e, consequentemente, da própria vida, sem a intervenção e influência da igreja e da ideologia cristã. No “Calibã e a Bruxa”, vemos como em muitos lugares, grande parte destes movimentos  “heréticos”, quando não a maioria foram liderados por mulheres que desejam construir uma nova ordem para suas vidas e de suas comunidades. Neste sentido, temos que entender os “três aspectos-chave da transição do feudalismo para o capitalismo: a constituição do corpo proletário em uma máquina de trabalho, a perseguição das mulheres como bruxas e a criação dos “selvagens” e dos “canibais”, tanto na Europa quanto no Novo Mundo”.

O patriarcado e a escravidão representam o alfa e ômega das bases do desenvolvimento dos modos modernos de produção capitalista. Portanto, o aumento da violência doméstica é um próprio sintoma da acumulação primitiva, do próprio desenvolvimento dos modos de produção capitalista, que constantemente necessitam se reafirmar sobre as classes que dominam. Será realmente impossível construir uma vida absolutamente livre destas forças de opressão seja para as mulheres, ou para todas as classes que sofrem com os sistemas racista e fascista de controle social porque estes sistemas são, simplesmente, vitais para a própria existência do capitalismo, erigido a partir de um modelo de economia baseado em um sistema alienado de produção. A conscientização de classe é vital para a destruição deste sistema que depende de um certo nível de alienação entre as classes trabalhadoras. Por conseguinte, todas as lutas da esquerda se resumem, de certo modo, na luta contra o imperialismo e contra o sistema capitalista de produção. Apenas a (iminente) vitória do multilateralismo sobre o imperialismo pode oferecer um horizonte de mudanças à todas as classes de um mundo dominado pelos donos dos meios de produção.

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