Para servir aos EUA, Bolsonaro barrará projeto contra racismo na ONU

Jamil Chade, no UOL – Uma resolução proposta na ONU pelos governos africanos contra o racismo coloca o Brasil numa encruzilhada. A coluna obteve com exclusividade o rascunho do projeto que será submetido ao voto nesta quarta-feira no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

O documento propõe que uma comissão internacional de inquérito seja estabelecida contra os EUA por conta do racismo e violência policial, algo inédito nas Nações Unidas. A mesma investigação seria criada para avaliar o mesmo fenômeno em outras partes do mundo, afetadas pelo racismo e a atuação da polícia.

O Brasil é considerado potencialmente com um desses locais que seriam alvos de investigações. Informes da ONU nos últimos anos deixaram claro que a violência policial contra a população afro-brasileira é uma violação de direitos humanos e um problema endêmico.

A coluna apurou que, dentro do Itamaraty, uma ala já demonstrou insatisfação em relação ao conteúdo do projeto e pressiona para que o governo não demonstre seu apoio à ideia.

Em Genebra, negociadores estrangeiros revelaram que o governo de Donald Trump, ainda que não faça parte do Conselho de Direitos Humanos, está mobilizando seus aliados para que impeçam o projeto de ser aprovado. Uma comissão de inquérito poderia abrir uma crise internacional ainda mais delicada para o americano, que busca sua reeleição. O Brasil seria um dos aliados pressionados pela Casa Branca para não deixar que o texto vingue.

Vozes, porém, alertam que um voto contrário do Brasil aprofundaria a crise de credibilidade internacional do país, principalmente em sua relação com os demais países em desenvolvimento e com a sociedade civil. Um dos temores é de que um alarde sobre tal postura do Brasil poderia levar grupos de combate ao racismo a ampliar seus protestos pelas ruas das principais cidades do país.

Uma instrução final sobre como deve ser a votação do governo brasileiro no Conselho de Direitos Humanos da ainda não foi emitida pelo Itamaraty e tudo dependerá de como serão as negociações sobre o texto final.

Em outros países, o debate também tem sido intenso, inclusive para o que uma comissão de inquérito poderia resultar para suas imagens. Na América Latina, não existe ainda uma posição conjunta do bloco sobre o tema.

O Brasil, que tradicionalmente adotou uma postura de combate ao racismo na ONU e chegou a propor durante anos resoluções sobre a relação entre a democracia e o racismo, terá agora de tomar uma decisão se apoia o projeto ou não.

Se optar pelo apoio, estará se submetendo à ideia de um exame internacional contra um dos pontos centrais do discurso de Jair Bolsonaro: sua defesa incondicional das ações da polícia no Brasil.

A resolução ainda gera mais uma dificuldade ao Brasil: a aliança com o governo de Donald Trump.

Se o governo brasileiro optar por apoiar a resolução na ONU, estará atacando diretamente seu maior aliado internacional. Desde o início da administração de Jair Bolsonaro, o Itamaraty passou a adotar uma postura criticada por ex-ministros como sendo uma de submissão aos interesses americanos. Na ONU, o Brasil repete o discurso de Trump, adota as mesmas posturas em votações e abandonou alguns de seus aliados tradicionais no mundo em desenvolvimento.

Apoiar uma investigação internacional contra os americanos representaria um gesto duro e que, em Washington, seria avaliado como uma “traição”.

De outro lado, se o Brasil não apoiar o projeto, sua postura de combate ao racismo e sua relação com os 54 países africanos poderiam ser afetados.

O projeto de resolução foi submetido à ONU pelos países do continente africano como uma resposta à crise aberta no caso da morte de George Floyd.

Eis o rascunho da resolução que promete causar um terremoto diplomático:

Condenando veementemente as contínuas práticas raciais discriminatórias e violentas perpetradas pelas agências de aplicação da lei contra africanos e de pessoas de ascendência africana e o racismo estrutural endêmico ao sistema de justiça criminal, nos Estados Unidos da América e em outras partes do mundo recentemente afetadas,

Alarmados pelos recentes incidentes de brutalidade policial contra manifestantes pacíficos que defendem os direitos dos africanos e dos afro-descendentes,

1. Decide criar uma comissão de inquérito internacional independente, a ser nomeada pelo Presidente do Conselho de Direitos Humanos para estabelecer fatos e circunstâncias relacionadas ao racismo sistêmico, supostas violações do Direito Internacional dos Direitos Humanos e abusos contra africanos e de pessoas afro-descendentes nos Estados Unidos da América e em outras partes do mundo recentemente afetadas, por agências de aplicação da lei, especialmente aqueles incidentes que resultaram na morte de africanos e de pessoas afro-descendentes; com o objetivo de levar os perpetradores à justiça,

2. Solicita à comissão de inquérito internacional independente que examine as respostas dos governos federal, estadual e local a protestos pacíficos, incluindo o suposto uso de força excessiva contra manifestantes e jornalistas;

3. Convida o Governo dos Estados Unidos da América e outras partes do mundo recentemente afetadas, e todas as partes relevantes a cooperar plenamente com a comissão de inquérito, e a facilitar seu acesso, solicita a cooperação de outros órgãos relevantes das Nações Unidas com a comissão de inquérito para cumprir sua missão, e solicita a assistência do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos neste sentido, inclusive na prestação de toda a assistência administrativa, técnica e logística necessária para permitir que a comissão de inquérito cumpra seus mandatos pronta e eficientemente.

4. Solicita à comissão de inquérito independente que apresente uma atualização oral na 45ª e 46ª sessões do Conselho; e que apresente um relatório final na 47ª sessão do Conselho

5. Solicitar à Comissão de Inquérito que permaneça apreendida à situação dos africanos e dos afro-descendentes e que chame a atenção do Conselho de Direitos Humanos para os casos de discriminação racial e violência contra eles

6. Solicita ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos que inclua atualizações sobre brutalidade policial contra africanos e de pessoas de ascendência africana nos Estados Unidos da América e em outras partes do mundo recentemente afetadas, em todas as futuras Atualizações Orais do Conselho.

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