FALSO JORNALISMO E FALSOS JUÍZES: A SOCIEDADE PRESA NO TRILHO DO TREM

Por Marcela Leite

Imagine a situação. Você vê um bonde sem freio, andando desgovernado no trilho. À frente do veículo, uma família de cinco pessoas está presa nos trilhos, e vai morrer. Vendo a situação, você tem a opção de puxar a alavanca que troca o caminho do bonde, alterando sua rota para o outro trilho. Neste, contudo, há um homem preso, que vai morrer se for feito o desvio. Se fizer o movimento da alavanca, o primeiro vai matá-lo. O que fazer? Deixar o destino do bonde matar cinco pessoas, ou ser responsável ativo por uma morte?

Lendo sobre um notícia da BBC, que reporta a tortura, por parte da CIA, de um suspeito de terrorismo no caso das torres gêmeas, é essa a situação que vem à cabeça. E todas as outras em que se tenta medir uma vida pela outra. Justifica-se a morte com quantidade (por exemplo, cinco pessoas mortas ou uma) ou qualidade da vida (um terrorista morto é preferível a um civil de bem).

Essa tentativa absurda de medição lembra ainda o que aconteceu, de outra forma, na última sexta feira, quando o programa Roda Viva chamou o jornalista Glenn Greenwald para ser entrevistado. Ele, inclusive, deu um novo fôlego aos admiradores do jornalismo, que estão acostumados com as notícias veiculadas por seus entrevistadores que, como se percebeu, pouco têm a acrescentar. A cena da entrevista-ataque foi semelhante àquela da animação do Rei Leão, quando as hienas cercam Simba. Não surpreendentemente, Simba torna se o rei da selva, expulsando Scar e seu exército de hienas.

Animações à parte, ao longo do programa, várias vezes foram feitas perguntas do tipo: “Glenn, você acredita que vai melhorar o Brasil com os vazamentos?”; “A operação Lava Jato, apesar de corrupta, como você diz, diminuiu a corrupção política. Vale a pena desacreditar a operação?”;  “Não é pior a corrupção dos políticos do que a do juiz?”

Apesar do baixíssimo nível das perguntas, em geral, as que levaram para esse lado de fato impressionam e merecem destaque, afinal, colocam em uma balança — a balança que supostamente mediria o benefício dos civis — a corrupção de políticos (dentre eles o maior prêmio da Lava Jato, o presidente Lula, cuja prisão ocorreu sem provas) e a da turma (ou quadrilha) de Moro.

Glenn, sem nenhuma alteração de humor ou irritação, apesar das perguntas descabidas, respondeu o óbvio, que por vezes a população e alguns jornalistas teimam em esquecer, ou negar.

Quem acabou com a lava jato, quem tirou sua credibilidade não foi Glenn. Quem tirou a credibilidade da operação foram Moro, Dallagnol e todos os da corja corrupta que lá se instaurou, em prol de um golpe contra Lula, preferido para a próxima presidência, e Dilma. Em prol também de enriquecimento próprio, fama, cargos.

Glenn não tem absolutamente nada a ver com maior ou menor corrupção. E mais: como jornalista, cumpre sua função com maestria. Se tem alguém a favor da sociedade civil, nunca foi Moro, mas Glenn. Moro nunca se importou com o bem estar de ninguém além de si próprio. Enquanto subia as escadas ao cargo de ministro, recebia condecorações do povo, influenciado pela grande mídia como a Globo e a Veja, que vestiam o juiz com capa de herói. Um juiz tem a obrigação de ser imparcial, justo. Ora, sem isso, a que o réu tem direito? Nada. O que a sociedade ganha, então? Um herói que nunca a protegeu.

Dessa forma, tentar colocar Glenn na berlinda quanto à corrupção que é mais ou menos positiva para o brasileiro não faz o menor sentido. Primeiro porque serviu apenas como confirmação do mau jornalismo ao qual estamos fadados com os maiores veículos e informação, jornalismo este tão inferior ao de Glenn. Segundo, porque a Vaza Jato expõe conversas ilegais entre agentes da justiça, ou seja, atitudes criminosas de quem deveria agir em proteção da sociedade. Essa discussão de medidas, enfim, é tão improfícua quanto a da tortura da CIA ao terrorista, ou da polícia fluminense  a supostos traficantes e bandidos. A quem vale mais a pena confiar: na CIA, na polícia, no juiz corrupto? São essas nossas proteções? Já que quem está morrendo é o negro pobre e quem está preso é o Lula, posso lavar minhas mãos e ficar tranquilo? Claro, até que o alvo dessa falsa justiça seja eu, por algum motivo. Qualquer motivo. Porque se não há a quem recorrer, são torturadores que nos têm nas mãos.

A lógica que nos faz crer que o puxador de alavanca é um herói é a mesma que condena Glenn. É a mesma que aplaude Witzel, é a mesma que condecora Moro. É a mesma que apoia a tortura da CIA, ou de qualquer outra instituição que alega nos proteger. Um juiz corrupto, injusto, que usa meios ilegais em prol de uma suposta anticorrupção está agindo em prol da sociedade  tanto quanto um homem que tem coragem de cometer um homicídio, baseando-se em um rápido cálculo de pessoas a serem mortas. Afinal, enquanto formos nós os protegidos, tudo bem morrer o homem, tudo bem prender o Lula. Estaremos, entretanto, protegidos pelos carrascos ao permitirmos isso.

Em de suas famosas falas, Bolsonaro disse que morreriam inocentes em uma guerra civil, mas que isso era necessário, banal. Witzel, em seu governo, não teme matar inocentes ao longo de operações na favela. Que medida é essa? Tudo bem torturar um suspeito de terrorismo, pelo bem dos “bons-civis”? É o torturador quem nos dá segurança? Por que alguém confiaria em um torturador, em assassinos? A polícia que nos “protege” é a que conduz chacinas nas periferias. Quem morre é quem está do nosso lado. Quem mata alega nos proteger. Isso não é proteção.

Quem tem coragem de puxar uma alavanca para matar uma pessoa, continua sendo quem puxou a alavanca. Frio, racional, assassino. E ainda assim talvez haja um estado  que o aplauda, que o coroe. Que coloque nessa pessoa uma faixa de governador e um fuzil nas mãos, para nos proteger do mal.

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