Vietnã salva paciente após 68 dias em UTI e se mantém sem mortes por covid-19
Por Oliver Barnes e Bui Thu | via BBC
“Se eu estivesse em quase qualquer outro lugar do planeta, eu estaria morto. Eles teriam desligado o interruptor depois de 30 dias”, diz Stephen Cameron, deitado em seu leito de hospital.”
O piloto escocês de 42 anos passou 68 dias com um respirador, mais tempo do que qualquer paciente no Reino Unido. Mas isso não aconteceu na sua cidade natal de Motherwell, no Reino Unido, mas sim em Ho Chi Minh (antiga Saigon), no Vietnã — sem qualquer amigo ou familiar por perto.
Cameron foi o último paciente de covid-19 em uma UTI no Vietnã. Ele foi também o caso mais grave que os médicos do país enfrentaram desde o começo da pandemia.
O país de 95 milhões de habitantes só teve poucas centenas de casos confirmados, poucas dezenas de internações em UTI e nenhuma morte. O caso de Cameron era tão raro no Vietnã que mereceu cobertura ampla da imprensa local para cada novo desdobramento.
Ele agora ficou conhecido nacionalmente como Paciente 91, apelido recebido em março, quando foi internado.
“Sou muito grato por como fui acolhido nos corações dos vietnamitas”, disse Cameron à BBC. “E, sobretudo, sou grato à tenacidade dos médicos em não me deixarem morrer sob sua guarda.”
‘10% de chance de sobreviver’
Dezenas de especialistas vietnamitas fizeram diversas reuniões para discutir a condição de Cameron.
“O número muito baixo de casos críticos permitiu que qualquer um em estado grave ganhasse a atenção dos clínicos mais graduados do país”, explica Kidong Park, o representante do Vietnã na OMS.
Durante boa parte dos dois meses e meio que Cameron ficou internado em coma, ele dependeu de uma máquina Ecmo, uma espécie de suporte de vida usada apenas em casos extremos.
As máquinas extraem sangue do corpo do paciente e colocam oxigênio nesse sangue, que é reintroduzido no paciente.
“Eu tenho sorte que o único efeito duradouro disso parece ser que minhas pernas não têm mais a força para me segurar, mas estou fazendo fisioterapia duas vezes por dia”, disse Cameron. “Em um determinado momento, meu amigo Craig ouviu do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido que eu tinha 10% de chance de sobreviver, então ele já se planejou para o pior — ele se livrou do meu apartamento e começou a fazer as coisas que alguém faria se pensasse que eu voltaria para casa em um caixão.”
Desde que retomou consciência, teve várias conversas telefônicas chorosas com amigos que estão no Reino Unido que “não imaginavam que eu fosse voltar”.
Médicos tiveram de lidar com várias complicações quando Cameron esteve em coma. Seu sangue ficou extremamente pegajoso, formando coágulos. Seus rins falharam, necessitando diálise. Sua capacidade pulmonar desabou para apenas 10%.
“Quando surgiu na imprensa aqui que eu precisava de um transplante de pulmão, aparentemente várias pessoas ofereceram seus pulmões, incluindo um veterano de guerra de 70 anos”, ele sorri. “Mas eu precisava de dois pulmões, então isso não teria acabado bem pra ele.”
Mas esse apoio maciço dos vietnamitas e os milhares de dólares gastos na sua recuperação fazem contraste com o clima hostil que enfrentou quando recebeu o diagnóstico positivo de covid-19.
O foco do bar Buddha
Cameron adoeceu poucas semanas depois de chegar ao Vietnã, no começo de fevereiro. Como muitos pilotos de avião ocidentais, ele foi para a Ásia em busca de salários melhores oferecidos pela então pujante indústria aérea regional. Duas noites antes de seu primeiro voo pela Vietnam Airlines e uma noite antes de bares começarem a fechar em Ho Chi Minh devido à quarentena, ele foi a um bar na zona mais rica da cidade para se encontrar com um amigo.
Na época, o Vietnã tinha menos de 50 casos confirmados, mas, segundo o professor Guy Thwaites, diretor da Oxford University Clinical Research Unit em Ho Chi Minh e assessor do governo para doenças infecciosas, a população “já tinha uma quantidade saudável de respeito e medo pelo vírus”.
Era o último fim de semana antes do Saint Patrick’s Day (Dia de São Patrício, tradicional data celebrada pelos irlandeses), e o Bar Buddha estava lotado de pessoas vestidas com vestimentas irlandesas quando Cameron chegou, às dez horas da noite.
“Eu não bebo, então fiquei na minha em um canto, joguei um pouco de sinuca e fui para casa as 3h15 da manhã”, ele lembra.
Quando apresentou febre, dias depois de seu primeiro voo, e outras 12 pessoas do bar testaram positivo, houve pouca simpatia da população local. O foco (de infecções) do Bar Buddha, como o episódio ficou conhecido na imprensa local, foi o maior surto no sul do Vietnã, com 20 pessoas contaminadas.
Para muitos nas mídias sociais, Cameron, que havia passado o dia fazendo turismo por vários pontos da cidade, era o culpado.
Apesar de não haver provas de que ele era a origem do surto, um proeminente empresário local, Luong Hoai Nam, rotulou o Paciente 91 como “bomba-relógio”. Ele fez campanha pela deportação de estrangeiros que violassem a quarentena, ganhando vários seguidores nas mídias sociais.
“Parecia haver um desejo de botar a culpa em mim que havia chegado do exterior, já que eu havia ido a Bangcoc (Tailândia) na semana anterior”, diz Cameron. O escocês diz acreditar que foi contaminado no Bar Buddha — e não na hipótese de ele ter sido a origem do surto.
“Eu fui o primeiro a levantar a mão e dizer ‘não estou me sentindo bem’. É inevitável que fossem me culpar.”
Declínio rápido
Em 18 de março, Cameron foi internado depois de receber o diagnóstico positivo e as autoridades foram rápidas em fechar o bar e colocar todo mundo do prédio de Cameron em quarentena. No total, 4 mil pessoas ligadas ao Bar Buddha foram testadas.
“As condições de saúde do Paciente 91 se deterioraram bastante”, lembra o médico Luong Noc Khue, que trabalha na força-tarefa de covid-19 do ministério da Saúde do Vietnã e que ajudou no tratamento de Cameron. “Havia um declínio preocupante nas funções não só dos seus pulmões, como dos seus rins, fígado e circulação sanguínea.”
Com sua condição se deteriorando, Cameron lembra de ter tomado a corajosa decisão de pedir para ser intubado. “Eu estava exausto e não conseguia dormir então pensei: ‘Ah, me coloquem sob sedação e arrumem isso'”, ele conta. Ele ficou em estado de coma por várias semanas, com médicos agoniados sobre como tratá-lo. Enquanto isso, os poucos pacientes que chegaram à UTI com covid-19 receberam alta e voltaram para casa.
O caso de Cameron continuou ganhando repercussão, com políticos de alto escalão prometendo que não seriam poupados esforços para mantê-lo vivo e o hospital temporariamente arcando com os custos do tratamento.
“O Vietnã conquistou um bom cacife político com minha recuperação — que também ajudou a manter o histórico deles, que é fenomenal em termos de covid-19”, diz.
Khue afirma que qualquer pessoa — estrangeira ou vietnamita — tem acesso a tratamento de qualidade.
“Nós focamos em tratar pessoas doentes no mais alto nível, tanto em termos de instalações como de recursos humanos, independente de serem do Vietnã ou do exterior.”
Acordando
Quando Stephen Cameron foi colocado em um respirador no começo de abril, havia pouco mais de um milhão de casos de coronavírus no mundo. Quando os médicos o acordaram, no dia 12 de junho, havia mais de sete milhões. Mas o Vietnã evitou o pior. Não há um registro de transmissão comunitária da doença desde 16 de abril.
“Eu nunca imaginei que levaria dez semanas para acordar de novo. Eu lembro de ser acordado, eu lembro da traqueotomia. Eu lembro de ser levado em cadeira de rodas pelos corredores do hospital — depois, os outros dias são uma confusão.”
Do seu leito de recuperação em um quarto no Hospital Cho Ray, para onde foi transferido após sair do respirador, Cameron está sentindo as consequências dos vários meses sem se mexer em que esteve gravemente doente.
Ele perdeu 20 quilos e seus músculos estão tão fracos que é difícil para ele levantar suas pernas por poucos centímetros. Ele também está sofrendo com fadiga extrema e depressão desde que acordou, e está com medo de sofrer estresse pós-traumático.
“Eu passei por muita coisa, mentalmente. Agora tudo que eu quero é voltar para casa. Sinto falta da quietude e do frio. Há tanto barulho de buzina de motos aqui e é temporada de monções. Quinze graus para mim em casa seria perfeito.”
‘Eu preciso voltar para a Escócia’
Nas últimas semanas, ele recebeu visitas de uma procissão de médicos e enfermeiras, diplomatas, autoridades de governo e políticos. Mais recentemente o quarto dele serviu de encontro entre o cônsul-geral britânico, Ian Gibbons, e o diretor do Comitê do Povo de Ho Chi Minh, Nguyen Thanh Phong.
Ele recorda de uma promessa de Phong, de “retorná-lo de volta para a Inglaterra em breve” — e de corrigi-lo.
“Eu disse que se eu fosse parar na Inglaterra, não ficaria feliz”, ele brinca. “Eu preciso chegar na Escócia, que fica a mais de 500 quilômetros dali.”
Também existe um motivo prático para o desejo de Cameron voltar para casa. Suas duas sessões diárias de fisioterapia são dificultadas pelo idioma.
Ele também conta que sente estar tomando um leito de uma pessoa que poderia estar em necessidade.
Contra as probabilidades
Seu atendimento médico não foi gratuito. Uma máquina de Ecmo custa algo entre 5 mil e 10 mil dólares (R$ 26 mil a R$ 52 mil) por dia. Ele usou a máquina por oito semanas e meia.
A disputa agora sobre quem deve pagar essa conta é algo que está estressando Cameron e dificultando sua recuperação. No início, o Hospital de Doenças Tropicais de Vietnã pagou os custos. Parecia que a Embaixada britânica fosse ajudar. Eventualmente seu seguro de saúde pagou por tudo. Mas ainda é preciso pagar pela estadia no Cho Ray Hospital.
“Isso tudo está ficando muito, muito frustrante. No começo eu mandava um e-mail para a companhia de seguros e eles respondiam: ‘sim, vamos resolver isso’. Agora a resposta é: ‘vamos lidar com isso em breve’ e nada parece acontecer.”
Cameron está com viagem marcada para o Reino Unido no dia 12 de julho. Os voos entre os países foram retomados há uma semana.
Seja como for, o caso da recuperação milagrosa do Paciente 91 não é apenas a história de um piloto escocês que conseguiu desafiar as probabilidades e se curar de covid-19. É também uma história de sucesso de um país emergente com uma história recente bem turbulenta.
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