Uma perspectiva geral sobre a nova ordem multipolar em desenvolvimento
Via Rede Voltaire (Thierry Meyssan)
A Rússia avança a passos largos na aplicação dos acordos de Genebra, de junho passado. Ela fez com que a Síria voltasse novamente ao concerto das nações, prepara-se para expulsar a Turquia, tenta reconciliar Israel e o Irã, é um ator importante na África e distribui armas decisivas na Ásia. Assim, os Estados Unidos já não são os mestres do mundo. Os que não acompanharem as atuais mudanças serão os perdedores da nova ordem mundial em desenvolvimento.
A aplicação das conclusões da Cúpula EUA-Rússia de Genebra – Ialta II -, continua. Parece que as concessões de Washington a Moscou parecem ser muito mais importantes do que se pensava. O Presidente Vladimir Putin continua seus esforços para ajudar a estabilização da ordem não apenas no Oriente Médio, mas também a África e a Ásia. Segundo a tradição russa, nada é anunciado, mas tudo será revelado quando as coisas se tornarem irreversíveis.
Os anglo-saxões aceitaram a derrota
No início de Setembro de 2021, os Estados Unidos demonstraram que autorizavam o Hezbolla a violar os embargo à Síria e ao Irã, aceitando combustível iraniano, via Síria. A seguir, a Jordânia reabriu a sua fronteira com a Síria. Por fim, a imprensa anglo-saxónica iniciou uma série de artigos visando absolver o Presidente Bashar al-Assad dos crimes de que o acusavam. Tudo começou com um artigo do The Observer, depois a edição dominical do The Guardian titulando « O pária Assad como a chave da paz no Próximo-Oriente » .
A Newsweek fez capa inteira do Presidente sírio « Ele está de volta », seguido pela legenda: « Num triunfo sobre os Estados Unidos, o líder sírio Bashar al-Assad reivindica um lugar na cena mundial » . A versão digital do semanário vai ao fundo da questão com a legenda de uma fotografia falando do « suposto » ataque químico na Ghutta, ocasião em que os Presidentes Norte-Americanos e Francês, Barack Obama e François Hollande, haviam nominalmente acusado o « regime criminoso » de ter cruzado « a linha vermelha ». Adeus, portanto, à retórica do « Bashar deve partir! »
A derrota militar que o Presidente Joe Biden admitira em Genebra, em Junho, é agora assimilada pela imprensa anglo-saxónica. Ao restante Ocidente só lhe resta seguir isso.
A volta da Síria na cena internacional está em curso : a Interpol tomou medidas para pôr fim à sua marginalização, o Rei Abdallah II da Jordânia e o Xeque Mohamed bin Zayed dos Emirados Árabes Unidos declararam que haviam falado com o Presidente Assad. O Alto Comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi, viajou discretamente para Damasco para debater, finalmente, o regresso dos expatriados. Ora, os Ocidentais opuseram-se a isto durante uma década e pagavam generosamente aos países que os abrigavam para, acima de tudo, não os deixar voltar a casa.
A Turquia vítima do seu duplo jogo
O Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, apresentou ao Parlamento a recondução da missão do Exército no combate aos terroristas curdos do PKK no Iraque e na Síria ; dois países onde mantêm ocupações ilegalmente.
Ele faz um jogo duplo : membro da OTAN, negoceia armas com Washington (80 aviões de combate F-16 e 60 kits de modernização para a sua frota), enquanto negoceia outras com Moscou, à qual comprou já S-400s ; um jogo arriscado que está chegado ao fim. Washington e Moscou trazem armas para a Síria e poderão ter-se unido para remeter Ancara ao seu lugar, tal como o fizeram, em 1956, com Londres, Tel Aviv e Paris na Expedição do Suez. Contrariamente às aparências, a Rússia sabe que não conseguirá separar a Turquia dos Estados Unidos. Ela enfrenta o Exército turco na Líbia e na Síria, Ele recorda do envolvimento pessoal do Presidente Erdoğan na Chechénia e, mais em geral da oposição entre a Rússia e os Otomanos.
O Exército sírio encerrou vitoriosamente a batalha de Daraa (Sul da Síria), permitindo à Jordânia reabrir a sua fronteira comum. Aí, os jihadistas preferiram depor as armas do que se refugiar em Idlib sob proteção do Exército turco. Agora, as tropas sírias concentram-se diante da ocupada província de Idlib (Norte do país), prontas a libertar o seu território.
A imprensa ocidental não deu noticias sobre esta terrível batalha, sendo subentendido que Daraa não teria podido ser libertada sem a discreta retirada de Israel e dos Estados Unidos. A população, que tanto sofreu, parece, de momento, odiar tanto os seus compatriotas como os aliados de ontem que a abandonaram.
A Turquia verá progressivamente todos os seus parceiros contra si. Concorre com os Estados Unidos e a França em África. O seu Exército perde na Líbia. Ela dispõe de uma base militar na Somália, acolhe no seu território militares malianos para treino, vende armamento à Etiópia e ao Burkina Faso e assinou um acordo de cooperação com o Níger (isto sem falar da sua base militar no Catar e do seu envolvimento no Azerbaijão).
O caso Osman Kavala, do nome do empresário de negócios de esquerda que se tornou o homem de George Soros na Turquia, preso em 2017. Uma dezena de Estados —incluindo Estados Unidos, a França e a Alemanha— fez circular nas redes sociais uma carta exigindo a libertação imediata do réu, acusado de estar envolvido na tentativa de golpe militar de 15 de Julho de 2016. Em 22 de Outubro, o Presidente Erdoğan reagiu, atacando os embaixadores envolvidos, com a sua habitual arrogância: « Acham que podem dar lições à Turquia? Por quem se tomam ? »
A posição pessoal do Presidente Erdoğan parece cada vez mais delicada. Um vento de rebelião sopra no seu próprio Partido político. Ele poderá vir a ser culpado pelos seus se as coisas correrem mal para o país em Idlib.
O Líbano entre o amanhã radioso e a Guerra civil
O Presidente Joe Biden parece decidido a deixar o Líbano à Rússia e a explorar as reservas de gás e de petróleo situadas entre o Líbano e Israel. Ele enviou o seu conselheiro de longa data, o Israelo-Americano Amos Hochstein, para fazer o vai-e-vêm entre Beirute e Tel Aviv. A sua presença atesta a extrema importância do assunto. Este oficial do Tsahal (FDI) foi conselheiro de Joe Biden quando ele era Vice-Presidente dos Estados Unidos. À época, em 2015, já tinha lidado com este processo e quase tinha chegado a um acordo. Pode ter êxito, já que, embora sendo um empresário amoral, conhece tão bem o dossier político como as dificuldades técnicas da exploração de hidrocarbonetos. Ele pressiona para a exploração das reservas mesmo sem resolver a espinhosa questão das fronteiras marítimas. Os dois países poderão operar em conjunto e dividir os lucros mediante acordo prévio.
No Líbano, os líderes dos grupos confessionais tentam todas as manobras possíveis para conservar o seu poder em declínio, mesmo que isso signifique destruir o futuro do país.
O Parlamento aprovou já durante a noite duas emendas à lei eleitoral. A primeira visa antecipar a data da eleição legislativa, prevista inicialmente para 8 de Maio, a ser realizada em 27 de Março. Os muçulmanos exigiam poder realizar capazmente a sua campanha já que ela coincidia com o mês da festa do Ramadão. Mas a nova data aparecia como um meio de impedir o General Abbas Ibrahim, Chefe da contra-espionagem, de poder ser eleito e de suceder ao Presidente do Parlamento, Nabbi Berry. A Constituição exige, com efeito, que os altos funcionários para poder entrar na política deixem as suas funções seis meses antes.
O Presidente Emmanuel Macron tinha previsto enviar tropas francesas para « proteger » as secções de voto. Ora, em 8 de Maio, provavelmente ele já não será o Presidente da República Francesa e nada garante que o seu sucessor aprovará a sua decisão. Pelo contrário, em 27 de Março ele estará ainda aos comandos.
A segunda emenda modifica a maneira como os expatriados poderão votar. Eles não elegerão deputados do estrangeiro, antes votarão em deputados da sua circunscrição eleitoral. Alguns esperam assim modificar substancialmente os resultados. Resumindo, tudo isto é pouco importante na medida em que o sistema eleitoral fixa previamente o número de deputados por grupo confessional sem relação com a realidade demográfica; um belo exemplo de eleição sem democracia.
O outro grande debate, é a investigação sobre a explosão do porto de Beirute, em 4 de Agosto de 2020. O Juiz Tarek Bitar choca com uma série de imunidades, a começar pela do antigo Primeiro-Ministro Hassan Diab, que no término das suas funções fugiu para o Estados Unidos e é alvo de um mandado de detenção. O Hezbolla, que suportou o peso da investigação sobre o assassinato de Rafiq Hariri, não pretende que a investigação siga esse exemplo, mas esbarra no sigilo da investigação. Por fim, ele exigiu, com veemência, a renúncia do juiz e organizou uma manifestação nesse sentido. Mas ao chegar em frente a um bairro cristão, o desfile foi atacado por membros das Forças Libanesas de Samir Geagea. Eles mataram sete xiitas e feriram uma trintena de outros. O espectro da guerra civil reacende-se. Não se sabe se as Forças Libanesas agiram por conta própria ou, de forma premeditada, por instigação da Arábia Saudita, da qual o cristão Samir Geagea se tornou o campeão.
A lenta reaproximação dos irmãos inimigos, Israel e o Irã
Moscou aborda a questão do conflito israelo-iraniano como um todo. Os dois Estados mantêm um discurso ultra-beligerante um contra o outro, mas a sua prática é completamente diferente. Eles agem, na realidade, juntos contra certas tendências políticas domésticas. A queda de Benjamin Netanyahu (discípulo do pensador colonialista Vladimir Jabotinsky) abre a via à reconciliação.
Enquanto os Estados Unidos decretaram sanções contra Teerã para a forçar a abandonar o seu programa nuclear militar, a Rússia nunca acreditou que depois de 1988 este tenha prosseguido. Durante as negociações dos 5 + 1, de 2013-15, que resultaram no Acordo de Viena sobre a energia nuclear iraniana, Moscou não exigia o fim do programa nuclear, mas a possibilidade de garantir que ele não se tornasse militar. Esta continua a ser a sua posição. As discussões atuais concentram-se em detalhes técnicos, tais como a instalação de câmaras de monitoramento nas usinas iranianas.
A lentidão com que Teerã trata este problema tem consequências contra si. Certo, o governo Raïssi negoceia entretanto com a Arábia Saudita, o que demora a normalização das suas relações com Israel. O Presidente Ebrahim Raïssi espera conseguir uma divisão de papéis com Riade e anunciá-lo no momento em que cederá no concernente à vigilância nuclear, mas os Sauditas impacientam-se e podem também causar estragos como se viu com o ataque contra os manifestantes do Hezbolla em Beirute.
Os Israelenses, esses, sublinham que Teerã não se apoia apenas nas comunidades xiitas estrangeiras, tal como afirma, mas, sim em todas as forças anti-israelitas, quer sejam xiitas ou não. Veja-se, o Irão fornece armas ao Hamas sunita. O que é uma aliança tanto mais perigosa quanto o Hamas é o ramo palestiniano da Confraria dos Irmãos Muçulmanos, apoiado pela Turquia e pelo Catar, e não pela Arábia Saudita. Na comunidade muçulmana, já não há, portanto, mais dois campos (xiitas e sunitas), mas três (Irã, Arábia Saudita e Turquia e Catar).
Moscou avança pacientemente com Tel Aviv. Trata-se de levar Israel a restituir à Síria os Golã ocupados, dando-lhe garantias sobre a não-agressividade do Irã e a sua retirada da Síria.
O Mali teme a França e aspira à proteção da Rússia
A derrota ocidental na Síria tem consequências imprevistas em África. Todos perceberam bem que a Ordem do Mundo deu uma volta e que vale mais ser aliado de Moscovo que dos Ocidentais. Se alguns Estados africanos buscam apenas diversificar os seus apoios militares dirigindo-se à Turquia, a República Centro-Africana e o Mali foram os primeiros a pôr em questão a ajuda ocidental.
Desde 2018, a Rússia apoia o governo Centro-Africano na resolução dos conflitos tribais mantidos pela França que mergulharam o país na guerra civil. Mas Moscou recusou enviar as suas tropas enquanto a situação permanecesse instável e preferiu enviar uma empresa militar privada, o Grupo Wagner de Yevgeny Prigojine. Em 2019, o governo assinou um acordo de paz com os 14 principais grupos armados do país. O país estabilizou, mas o governo não controla senão ainda uma pequena parte.
O Mali é uma vítima direta do derrube da Jamahiriya Árabe Líbia em 2011. Muamar Kadhafi trabalhava pela reconciliação de árabes e negros, o seu assassínio despertou séculos de guerra, restabelecendo por um lado a escravidão no seu país e, por outro lado, o desejo de dominação árabe sobre as populações negras no Mali. É esse conflito que se exprime através da investida jiadista árabe no Norte do país. De momento, as forças francesas da Operação Barkhane estão tentando impedir a reconstituição de um Emirado islâmico no Sahel. Na prática, isso significa impedir a conquista de uma zona à população negra sedentária por jiadistas árabes nómadas, mas não em lutar contra as suas organizações.
Em 8 de Outubro, o Primeiro-Ministro maliano, Choguel Kokalla Maïga, furou o abcesso, declarando à RIA Novosti que a França estava treinando jiadistas no seu campo de Kidal, no qual havia proibido a entrada de forças malianas. A entrevista foi largamente difundida pelas televisões russas, mas não chegou às ondas francesas. No máximo, o Le Monde publicou uma atualização de Choguel Kokalla Maïga, mas na qual ele desmente apenas as suas negociações com o Grupo Wagner enquanto confirma que fala com Moscou… do Grupo Wagner.
A acusação de instrumentalização de jiadistas é muito plausível: no início da sua intervenção, a França havia atrasado os seus militares para dar tempo ao enquadramento catariano dos jiadistas em retirar. Outros jiadistas, na Síria desta vez, organizaram manifestações para denunciar o jogo duplo francês que os apoiava no Médio-Oriente mas declarava combatê-los em África. Quando o Ministro russo dos Negócios Estrangeiros (Relações Exteriores-br), Serguei Lavrov, se mostrou espantado junto do seu homólogo francês, à época, Laurent Fabius, este respondera-lhe rindo que isso era a realpolitik.
A Junta do Coronel Assimi Goïta (discípulo do revolucionário terceiro-mundista Thomas Sankara) está em negociações com a Rússia para se defender dos jiadistas enquadrados pela França. Moscou deverá proceder como na República Centro-Africana e enviar um milhar de homens do Grupo Wagner para restabelecer a paz civil. O pagamento da empresa militar privada russa deverá ser feito pela Argélia.
O equilíbrio de forças está posto em questão
Uma após a outra, a China e a Coreia do Norte terão lançado mísseis hipersónicos. A China nega, mas a Coreia do Norte proclama-o alto e bom som. Especialistas dos EUA, deputados dos EUA e Generais dos EUA estão apavorados porque o seu país não consegue dominar esta tecnologia que os torna vulneráveis. Este tipo de mísseis baseia-se numa tecnologia soviética. O Presidente Vladimir Putin anunciara à Assembleia Federal, em 2019, que a Rússia estava a ponto de conseguir equipar estes mísseis com cargas atómicas, capazes de atingir qualquer parte da Terra sem serem interceptados. Visto que parece impossível que a China, e mais ainda a Coreia do Norte, tenham subitamente alcançado esse nível técnico, os peritos são unânimes em considerar que a Rússia lhes terá dado uma versão da sua própria arma.
Esta transferência de tecnologia terá tido lugar antes do anúncio da Aliança Austrália/Reino Unido/EUA (AUKUS). O que reduz a nada os esforços de Washington face a Pequim e Pyongyang. Os Ocidentais não apenas sofreram uma terrível derrota na Síria, que os obriga a aceitar uma Nova Ordem Mundial, o seu « escudo anti-mísseis » é superável e os seus exércitos estão agora totalmente ultrapassados.