A virada da Arábia Saudita em direção à Eurásia

Via The Cradle

As recentes reconciliações da Arábia Saudita com o Irã e a Síria sob orientação sino-russa são vistas como um passo para reduzir a dependência de Riad dos EUA, ao mesmo tempo em que avança a influência política e econômica de Pequim e Moscou na Ásia Ocidental.

Em 6 de março de 2023, autoridades iranianas e sauditas realizaram uma reunião em Pequim, onde concordaram em restaurar as relações bilaterais. O acordo foi significativo não apenas para a desescalada mútua das tensões na Ásia Ocidental, mas também para a crescente importância da Arábia Saudita no processo de integração da Eurásia liderado pela China e pela Rússia.

Ao acolher a mediação chinesa, o reino se posicionou como ator independente capaz de abrir portas para Pequim e Moscou em uma região tradicionalmente ofuscada por uma grande potência rival, os Estados Unidos. Este movimento aumenta a importância da Arábia Saudita no cenário geopolítico e fortalece seus laços com Pequim e Moscou.

Afirmando a autonomia dos EUA

Durante grande parte de sua história, a Arábia Saudita foi uma forte aliada dos EUA na região do Golfo Pérsico. No entanto, o pântano militar do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (MbS) no Iêmen – entre outras coisas – prejudicou a percepção de Washington do reino como um posto avançado estável e confiável na região. O sentimento era mútuo e forçou MbS a buscar ajuda de outras nações para ajudar a diminuir as tensões nas fronteiras sauditas.

Entre 2021 e 2022, Riad se envolveu em várias rodadas de um diálogo com o Irã no Iraque para negociar a ajuda de Teerã para impedir que seus aliados no Iêmen e no Iraque atacassem o território saudita.

O que é particularmente notável para a China e a Rússia é que MbS não usou essa diplomacia como meio de restaurar a tradicional centralidade dos EUA nas políticas regionais e de segurança do reino. Em vez disso, ele fez questão de cooperar com Pequim e Moscou, ao mesmo tempo em que esnobou Washington.

Por exemplo, em outubro de 2022, a Arábia Saudita fez parceria com a Rússia, parceira da OPEP+, para cortar a produção de petróleo, quebrando os compromissos assumidos com o presidente dos EUA, Joe Biden, durante sua visita a Jeddah em julho. MbS também ofuscou a viagem de Biden com uma recepção muito mais grandiosa para o presidente chinês Xi Jinping em dezembro, durante o qual Riad também sediou a primeira Cúpula do Conselho de Cooperação China-Golfo (GCC) para enfatizar a visão saudita da China como um parceiro regional em vez de apenas um bilateral um.

Nesse cenário, a decisão saudita de assinar um acordo mediado pela China com o Irã sem o envolvimento de Washington foi interpretada como um “dedo do meio para Biden”, nas palavras do ex-analista do Departamento de Estado dos EUA, Aaron David Miller.

Da mesma forma, a nascente détente mediada pela Rússia com a Síria, cujo governo aliado do Irã e da Rússia ainda é contestado pelos EUA, também ilustra a disposição da Arábia Saudita de se afastar de sua tradicional postura pró-americana.

Movendo a região para o leste

Para a China e a Rússia, esses movimentos de MbS significam mais do que apenas vitórias diplomáticas sobre os EUA. Eles representam o apoio da Arábia Saudita aos seus esforços para moldar a dinâmica no Golfo Pérsico, onde ambas as potências eurasianas até agora mantiveram um perfil discreto por causa da dominação ocidental de décadas da região – agora em declínio.

Facilitados pela Arábia Saudita, Pequim e Moscou podem envolver o Golfo Pérsico como uma ponte para expandir sua influência na região mais ampla da Ásia Ocidental e, assim, avançar em seus projetos de integração da Eurásia.

A China, em particular, assumiu a liderança nesse sentido com sua ambiciosa Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI). O Golfo Pérsico já está bem integrado ao BRI graças ao crescente comércio de energia China-GCC e aos crescentes investimentos da China em parques industriais e portos em todo o GCC. No entanto, os conflitos e a desordem no resto da Ásia Ocidental até agora prejudicaram a capacidade da China de fazer investimentos significativos do BRI na região.

Conforme observado em uma análise de março de 2022 para Inside Arabia, a China vê a estabilidade de seus interesses econômicos no Golfo Pérsico como essencial para o sucesso de seus planos e vê seus laços sino-GCC como um modelo para estabilizar a Ásia Ocidental mais ampla sob o BR. Para esse fim, a China apoiou os esforços de resolução de conflitos liderados pelo GCC no Iêmen e também apresentou sua Iniciativa de Cinco Pontos em março de 2021, pedindo esforços de estabilização em toda a região e o estabelecimento de uma arquitetura de segurança local.

Nesse contexto, o acordo de normalização Irã-Arábia Saudita é uma ótima notícia para a China. Afirma a ideia de Pequim de que suas parcerias no Golfo Pérsico podem servir como ponto de partida para os esforços de estabilização de toda a Ásia Ocidental; afinal, a rivalidade de Teerã e Riad se desenrolou muito mais em lugares como Iêmen, Líbano, Síria, Iraque e Palestina do que no próprio Golfo.

O Acordo de Pequim não foi apenas um desenvolvimento positivo para o BRI da China, mas também para o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC) liderado pela Rússia. Assim como Moscou apóia o BRI como um meio de promover a multipolaridade e diminuir o domínio dos EUA, ela tem trabalhado ativamente para promover o INSTC, que conecta a Índia por mar ao Irã e depois ao norte da Europa via Azerbaijão e Rússia.

Com o abrandamento das tensões entre o Irã e a Arábia Saudita, o INSTC deve se beneficiar do aumento das oportunidades econômicas. A Rússia pode explorar possibilidades como aumentar seu próprio comércio com o Golfo Pérsico via Irã por meio do INSTC e, além disso, com o restante da Ásia Ocidental. Assim, a détente Irã-Arábia Saudita é uma boa notícia para os próprios projetos de conectividade da Rússia e esforços de integração regional.

Fortalecendo o SCO

Em 29 de março de 2023, a Arábia Saudita anunciou sua intenção de se tornar um parceiro de diálogo da Organização de Cooperação de Xangai (SCO), instituição fundada pela China para promover a segurança multilateral e a coordenação diplomática em questões regionais na Eurásia.

A SCO já inclui China, Rússia, Índia, Paquistão, Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão e Tajiquistão, cobrindo a vizinhança eurasiana imediata da China na Ásia Central e Meridional, bem como a Rússia.

Com a adesão em curso do Irão como membro pleno da SCO, a entrada da Arábia Saudita como parceiro de diálogo traria para as fileiras da organização dois dos Estados mais importantes em termos de resolução de conflitos na Ásia Ocidental.

Esse é o tipo de expansão da participação, escopo e relevância da SCO que é buscada pela China e também pela Rússia. Moscou há muito vê a SCO como uma plataforma ideal para apresentar uma frente sino-russa unificada contra os interesses dos EUA, com um dos primeiros exemplos disso sendo a declaração da Cúpula de Astana em julho de 2005, exigindo a retirada da presença militar dos EUA na Ásia Central.

Assim, uma extensão do mandato da SCO para questões da Ásia Ocidental oferece a Moscou a oportunidade de pressionar pela cooperação sino-russa contra os EUA também na Ásia Ocidental, continuando no espírito de sua parceria eurasiana consagrada na SCO.

Os novos horizontes de Riad na Eurásia

Indiscutivelmente, o movimento da Arábia Saudita em direção à SCO é altamente vantajoso para a China e a Rússia. Ao provar sua utilidade para os esforços destes últimos por uma comunidade eurasiana maior e mais interconectada, o reino também está bem posicionado para buscar seus próprios fins na Eurásia que dizem respeito aos interesses nacionais sauditas.

Por exemplo, a Arábia Saudita pode dobrar seus planos de investimentos significativos na Ásia Central, uma parte do espaço eurasiano que a Rússia monitora de perto em busca de quaisquer sinais de atividade de países que considera antagônicos aos seus desígnios eurasianos.

As tentativas das repúblicas da Ásia Central de diversificar suas economias para além do petróleo e do gás apresentam oportunidades lucrativas de investimento para Riad, que busca sua própria diversificação além da energia no âmbito do megaprojeto da MbS, Vision 2030.

Além disso, a Arábia Saudita pode alavancar sua reputação elevada com a China e a Rússia para impedir a possível oposição de concorrentes a seus movimentos na Eurásia. Um exemplo disso são os investimentos de Riad no projeto de gasoduto Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia (TAPI), um rival das ambições do vizinho Irã de penetrar no grande mercado de gás do sul da Ásia.

Se Riad não tivesse um entendimento eurasiano com Pequim e Moscou, Teerã – considerado um estado vital da Eurásia – ficaria tentado a levantar o alarme sobre suas negociações com Ashgabat, que também compra equipamentos de defesa sauditas.

O pivô eurasiano do reino

O movimento em direção a uma política externa mais diversificada foi uma transição relativamente suave para a Arábia Saudita. Apesar de seu grande fracasso militar no Iêmen e das preocupações de segurança resultantes, o reino conseguiu encontrar novos parceiros.

Ao adotar o paradigma eurasiano promovido pela China e pela Rússia, a Arábia Saudita consegue preencher as lacunas expostas em sua política externa após o rompimento de seu relacionamento estratégico com Washington na região.

Em última análise, isso oferece flexibilidade para o reino perseguir seus próprios interesses nacionais, ao mesmo tempo em que contribui para o objetivo maior de uma comunidade eurasiana mais interconectada.

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